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Jogo de xadrez com a morte: ultramaratonista brasileiro faz percurso inédito; veja entrevista

Ultramaratonista brasileiro percorreu 42 quilômetros em terreno lunar de alto monte; entenda o percurso e veja o que ele falou sobre
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Blog Luiza Pastor – Quem já viveu a experiência única de percorrer o platô lunar do alto do Monte Roraima, na tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana, sabe o quanto a topografia local exige a cada passo. Com a aparência de um imenso tabuleiro de xadrez, o visitante é reiteradamente alertado pelos guias que só deve pisar nas pedras “brancas”, ou seja, naquelas em que os muitos passos de outros caminhantes já limparam a área e a deixaram razoavelmente segura. Nas “pedras pretas”, uma grossa camada de matéria orgânica em decomposição misturada a lama e à poeira de dois bilhões de anos cria armadilhas que podem fazer o pé distraído afundar alguns centímetros na gosma fedorenta ou alguns metros que ameaçam ossos e tendões. Não custa ressaltar, por óbvio, que as pedras não são tão regulares quanto as casas de um tabuleiro, afinal trata-se de uma trilha natural e a natureza tem sabida ojeriza à simetria. Peões, lá nos seus 2.810 metros de altitude, sofrem, e não tem cavalo, bispo ou realeza que se meta a besta.

Mas se só caminhar pelos 32 quilômetros quadrados do platô já é um desafio, dá para imaginar o que leva um cidadão a resolver fazer nada menos que uma maratona na superfície do monte Roraima? Pois essa foi a ideia que teve o paranaense de Curitiba Marlus Jungton, 42, que correu, ao lado do guia venezuelano José Ramon Lezama, conhecido como Rambo, 42 quilômetros e quebrados quicando de pedra (branca, ou quase) em pedra (branca, ou quase) em 8h41m.

Sem registro de alguém que tenha completado tal façanha em algum outro momento, Jungton conversou com o blog para contar um pouco de sua vida em busca de novos desafios.

1. Você já tinha corrido dez maratonas em dez dias ao longo do Caminho de Santiago, na Espanha, em 2022. O que o levou a escolher o monte Roraima para mais uma maratona?

Eu faço corridas desde 2015, corro e subo montanhas de altitude, como a Aconcágua (6.961m), na Argentina, e a Himlung Himal (7.135m), no Nepal. Não fiz cume em nenhuma das duas, não estava preparado e fiz tudo errado, nunca nem tinha dormido numa barraca, imagine, mas foram experiências incríveis de subir em montanhas. Já corri em dez países, fiz 3 ultramaratonas [provas que variam de 70 a 160 quilômetros], 33 maratonas, e juntar os dois esportes, corrida com montanha, ainda mais em um lugar cheio de energia como é o Roraima, essa coisa de correr por três países, tudo isso me animou. E eu fui.

2. O que você sabia sobre a topografia do monte? O que pensou quando chegou lá no alto e viu como era na realidade?

Quando eu disse à guia da expedição que pretendia subir e correr lá em cima, ela tentou me dissuadir, porque a área era difícil e ela não sabia de ninguém que tivesse feito isso. Me deu vários motivos para não fazer isso, explicou que a paisagem é lunar, com muitas pedras, mas eu insisti. Só chegando lá entendi o que era o tal terreno lunar, um espaço em que você não consegue nem andar normalmente, tem que pular o tempo todo porque nada é plano. Acho que dá para encontrar trechos planos para correr de, no máximo, uns três metros seguidos, isso em um percurso total de 42 mil metros.

Na verdade, lá é um jogo de xadrez, como dizem, mas, dramatizando um pouco, no Roraima você está jogando xadrez com a morte, porque cada passo é estratégico e em cada salto você pode cair, afundar, virar o pé, por exemplo, ou bater a cabeça numa rocha, o que seria um problemão numa montanha da qual só se é resgatado ou por dois guias te carregando para baixo ou por um helicóptero pelo qual é preciso pagar R$ 40 mil. Então, foram mais de oito horas saltando fendas, subindo e descendo paredes engatinhando, o que significa parar a corrida com o batimento cardíaco lá no alto para escalar e depois retomar o ritmo.

3. Como escolheu o parceiro, o Rambo, para a empreitada?

Quando eu insisti em que ia correr lá no alto, a agência Soul Outdoor consultou seus parceiros para acharem um guia local que pudesse me acompanhar, porque não me autorizariam a sair sozinho, mesmo com GPS. Eles descobriram um guia de origem indígena que trabalha na cozinha das expedições, nascido na região, e que também corre nas horas vagas, já tinha feito maratonas também. Quando o conheci, ele entendeu na hora o desafio que seria fazer o roteiro que normalmente se faz em sete dias em apenas algumas horas, e aceitou a empreitada na hora. O Rambo fez todo o trajeto comigo, corremos juntos e não soubemos de nenhum outro atleta que tenha completado esse desafio lá, num dos terrenos mais difíceis e perigosos do planeta.

4. O que mais te marcou nesse desafio em Roraima?

Sem dúvida, a energia do local. Porque você vai correr numa corrida de trail run, em trilhas, ela vai ter uma organização, porque é comercial, né? Eu sou corredor amador, mas não costumo correr em montanhas, nem tenho fôlego para isso. Então, no Roraima, tive a oportunidade de correr num lugar mágico, um privilégio, correndo ao lado do Rambo, conquistando aquilo ao lado dele e entrar em êxtase vendo como era superar os perigos, tudo isso marcou demais.

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