REPORTAGEM ESPECIAL

Kamilla Cardoso superou bullying na escola e vendeu maçã do amor antes de brilhar na WNBA

Natural de Montes Claros e apontada com uma das maiores promessas do basquete brasileiro, Kamilla é vencedora dentro e fora das quadras
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A brasileira Kamilla Cardoso estreou como titular na WNBA, liga feminina de basquete dos Estados Unidos, no dia 8 de junho, destacando-se como uma das cestinhas do Chicago Sky, com 13 pontos. A pivô se tornou sensação do basquete e ganhou os holofotes da mídia esportiva em abril, quando foi top-3 no draft, seleção para a WNBA, sendo escolhida para começar sua carreira profissional na equipe de Chicago. Natural de Montes Claros, no Norte de Minas, e apontada com uma das maiores promessas do basquete brasileiro dos últimos anos, Kamilla é vencedora dentro e fora das quadras.

Com a mesma determinação e habilidade demonstradas em seus arremessos, Kamilla, de 23 anos, superou obstáculos. Integrante de família humilde de seis irmãos, iniciou as atividades esportivas cedo, dos 11 para os 12 anos. Também ajudou a mãe, a batalhadora e arrimo de família Janete Cardoso, de 53, na labuta como vendedora ambulante.

Entre outros ofícios, a agora atleta do basquete profissional norte-americano auxiliou a mãe a vender pequi, o fruto-símbolo do cerrado; e na comercialização de “maçã do amor”, conhecida guloseima oferecida por ambulantes para o público da Exposição Agropecuária de Montes Claros (Expomontes).

Na infância, Kamilla sofreu bullying na escola exatamente por causa de uma condição que facilita o bom desempenho no garrafão: a altura de 2,01m. A atleta também teve que superar a distância da família. Ainda muito nova, às vésperas de completar 15 anos, seguiu sozinha para os Estados Unidos, com o desejo de ser jogadora na maior liga de basquete feminino do mundo. A pivô é a 16ª brasileira na WNBA.

A reportagem do Estado de Minas levantou as informações sobre a trajetória e obstáculos rompidos por Kamilla Cardoso antes do estrelato ao conversar com parentes e profissionais que acompanharam o inicio dela no esporte em Montes Claros.

O principal testemunho é da irmã, Jéssica Cardoso, de 29, que também foi jogadora de basquete e educadora física. É ela a maior incentivadora da agora atleta do Chicago Sky.

“A Kamilla, desde pequena, era muito tímida, mas sempre foi extremamente corajosa. A gente costumava dizer que ela era uma jogadora de decisão. Quando disputava jogos “meia-boca”, jogava bem, mas não era a melhor. Porém, nos jogos fortes e importantes, sempre era a melhor em quadra. Às vezes, torcia o pé e, mesmo assim, continuava jogando”.

Jéssica Cardoso, irmã de Kamilla Cardoso
Janete, Kamilla e Jéssica (Arquivo pessoal)

Jéssica relata que a irmã começou a praticar esportes ainda criança, em escolinhas de Montes Claros. Fez natação, handebol e vôlei. “A Kamilla era muito fechada. A gente precisava de uma forma de socializá-la. Quando estava com 11 anos, começamos a levá-la para o mundo esportivo”

Ela conta que, aos 13 anos, Kamilla disputou os Jogos Escolares Brasileiros pela Seleção Mineira. Logo destacou e despertou o interesse de várias equipes no Brasil. Jéssica explica que, por orientação do técnico Rogério Santana, que treinava Kamilla em Montes Claros, a família decidiu rejeitar a propostas: “A Kamilla era muito nova e ainda tinha dificuldade de interação. Aí, o Rogério falou ‘vamos prepará-la mais um pouco’.

Segundo Jéssica, às vésperas de completar 15 anos, em 2016, Kamilla recebeu o convite e viajou sozinha para os Estados Unidos, onde se matriculou numa escola de ensino médio em Atlanta, capital do estado da Geórgia, e ganhou notoriedade pela habilidade no basquete. Em seguida, mudou-se para a Carolina do Sul, onde seguiu a carreira vitoriosa até ser selecionada no draft e passar a disputar a WNBA.

Superação de bullying e venda de ‘maçã do amor

“Aqui ninguém repara ninguém. Todo mundo pode ser o que quiser”. Essa foi uma das primeiras afirmações feitas por Kamilla Cardoso ao chegar aos Estados Unidos, relata a irmã dela, Jéssica Cardoso. A observação ganhou importância porque na infância a jogadora enfrentou dificuldades exatamente por causa de bullying.

“A Kamilla sofreu muito bullying”, relata Jéssica, se referindo à situação vivida pela irmã por conta da altura. “Ela brincava muito na escola. Os coleguinhas colocavam apelidinhos nela. No dia a dia, sofria com olhares”, detalha

“Como sou sete anos mais velha, certa ocasião acompanhei a Kamilla o dia inteiro na escola. No dia seguinte, solicite uma reunião com os pais dos alunos para falar daquela situação. Na reunião, eu disse que não era justo as pessoas não saberem lidar com minha irmã. Eu falei ‘se minha irmã é grande e tem o pé grande, não precisa ficar todo mundo falando que ela tem o pé grande’. Ao final da reunião, todos os pais se abraçaram.”

Jéssica Cardoso

As provocações e constrangimentos enfrentados na escola pela irmã mais nova tiveram, então, fim. Jéssica destaca o fato mais importante: Kamilla superou o bullying e seguiu em frente. Ela salienta que a prática esportiva serviu como ferramenta para que a irmã vencesse a discriminação: “(No esporte), em vez de as pessoas rirem dela pelo tamanho, a elogiam”.

Montes Claros. na foto: Kamilla Cardoso (E) ao lado da irmã, Jéssica (D) com a mãe, Janete, na banca de produtos típicos do sertão de Janete em Montes Claros.

Se hoje Kamilla mostra habilidade nos arremessos em direção à cesta na quadra, na adolescência ela ajudou a encher outras cestas, mas as dos clientes de sua mãe, no trabalho como ambulante. Vendia produtos típicos do Norte de Minas como alho, rapadura, doces e temperos.

“A gente nunca precisou trabalhar, mas, como sempre estivemos com minha mãe, a gente a ajudava muito. A minha mãe trabalha muito para dar o melhor pra gente”, afirma Jéssica, lembrando que ela e Kamilla auxiliavam a mãe na banca de produtos típicos da região – um deles, o pequi, o fruto-símbolo do cerrado.

“A safra do pequi coincidia com a época que a gente estava de férias na escola. Minha mãe sempre foi uma grande vendedora de pequi. Ela é chamada de rainha do pequi de Montes Claros”, comenta a irmã de Kamilla.

A educadora física ressalta também que, assim como ela, Kamilla ajuda a mãe a vender “maçã do amor” na Expomontes. A “maçã do amor” é vendida por ambulantes em barracas em frente e ao lado do Parque de Exposições da cidade durante a feira. “A Kamilla era muito boa vendedora. Acho que isso está no nosso sangue”, disse Jéssica.

Outro percalço sofrido por Kamilla foi a perda do pai, Joaquim Cardoso da Silva, aos 81 anos, em julho de 2022. Joaquim era separado de Janete, mas tinha bom relacionamento com os filhos. Na ocasião da morte do pai, a atleta estava de férias na casa da família em Montes Claros.

Demora para conseguir visto

A mãe de Kamilla, Janete, teve a satisfação de ver pessoalmente a filha brilhar na quadra na seletiva para a WNBA. Chegou de surpresa aos Estados Unidos, sem que a jogadora soubesse da viagem. Antes disso, enfrentou um verdadeiro drama para tentar visitar a filha. Conforme Jéssica, Janete Cardoso conseguiu o visto para viajar para a América do Norte depois de três negativas.

Jéssica se diz muito orgulhosa do sucesso da irmã na Liga Americana de Basquete Feminino. “Nem nos meus maiores sonhos eu imaginava isso que está acontecendo com a Kamilla. Ela falava que queria jogar na WNBA , mas acho que ela sabia que isso iria acontecer”.

A educadora física sente orgulho do reconhecimento da irmã atleta. “Eu poderia ficar falando da trajetória da Kamilla por muito tempo. O mais importante é ressaltar a importância do primeiro incentivo que ela teve. Temos que lembrar lá atrás, quando uma pessoa olhou para o basquete de base. É muito importante as mulheres terem a oportunidade de praticar esporte e conhecerem o mundo igual eu conheci por meio do esporte e também busquei oportunidade para minha irmã. Mas também temos que perguntar quantas Kamillas temos perdido por falta de incentivo. Então, sempre vou defender a pauta do incentivo as mulheres e da formação de base”.

A superação e o sucesso de Kamilla nas quadras são comemorados por outros integrantes da família. “Eu me sinto muito grato e também realizado com o sucesso da Kamilla”, afirma o servidor público Eustáquio Cardoso, primo da jogadora do Chicago Sky e praticante de artes marciais.

A técnica de enfermagem Vanda Nascimento da Silva, irmã de Kamilla (por parte de pai), também enche a atleta da WNBA: “A Kamila sempre foi lutadora. Ela também é muito família”.

Kamila ao lado da mãe, da irmã e do técnico Rogério Santana (Arquivo pessoal)

Conjunto de qualidades e exemplo

Desde que começou a atuar nas quadras, Kamilla Cardoso demonstrou um diferencial: a capacidade de conciliar o grande porte físico com habilidade e rapidez. A observação é do técnico Rogério Santana, também de Montes Claros, um dos primeiros treinadores de Kamilla, quando ela, ainda aos 13 anos.

“A gente notou que a Kamilla tinha muita destreza por ter praticado atividades diferentes na infância. Ela contava com um desenvolvimento motor muito grande. Também era muito rápida. Então, investimos nisso. A gente viu uma forma legal de desenvolver capacidades diferentes de uma menina com um padrão de altura igualmente diferenciado”, conta Santana.

Ele salienta que, logo aos 13 anos, Kamilla recebeu convites para jogar em outros estados, como São Paulo e Paraná. Mas, como treinador, fez um planejamento para que ela pudesse permanecer na terra natal, buscando aprimoramento: “Criamos um plano para que ela pudesse melhorar em todos os sentidos, não só no basquete, mas nas questões sociais, de aprendizado, desenvolvimento e amadurecimento, para conviver com pessoas mais velhas”.

Rogério revela que, inicialmente, havia uma perspectiva de Kamilla Cardoso ir a Portugal para jogar basquete. Todavia, por intermédio do empresário Fábio Jardine, ela rumou para os Estados Unidos. Jardine passou a cuidar da carreira da atleta.

Hoje trabalhando em Juiz de Fora, na Zona da Mata, ele diz esperar que a carreira vitoriosa de Kamilla Cardoso sirva como referência para fortalecer as mulheres no esporte: “Que a trajetória da Kamilla posa inspirar novos professores, novas jogadoras, novas estruturas. Despertar os parceiros e órgãos públicos para eles possam entender que entender que isso que aconteceu com a Kamilla só virou realidade porque houve pessoas que tiveram a visão de que uma menina pode, uma mulher pode, todo mundo pode chegar a algum lugar se as coisas forem oportunizadas de forma correta”, conclui Rogério Santana.

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