Representatividade, inclusão, liberdade, existência. O desenvolvimento do futebol feminino abre espaços. Destaque para a possibilidade de atletas viverem profissionalmente da bola e para a ocupação da arquibancada por um público diferente daquele que majoritariamente marca presença em confrontos entre homens. É possível dizer que se trata de uma relação de mutualismo, na qual uma parte promove a outra. Justamente a partir do sentimento de pertencimento, o movimento denominado Desorganizada Cabulosa nasceu. As intenções são claras: apoiar o time feminino do Cruzeiro e fazer dos estádios um espaço seguro.
Líder e principal nome da equipe celeste, Byanca Brasil não imaginava que um simples ato – e lotado de significado – seria o combustível para a criação de uma “organizada desorganizada”. Na final do Campeonato Mineiro de 2023, a camisa 10 comemorou o gol que deu a vitória às Cabulosas diante do Atlético erguendo a bandeirinha de escanteio, estampada pelas cores do arco-íris, referentes ao movimento LGBT.
“Ali, para mim, acabou. Falei assim: ‘Aqui, é isso, o meu lugar no futebol'”, disse Natália Simões, fundadora da Desorganizada Cabulosa.
Desde então, a médica de 30 anos passou a levar uma ‘vida dupla’. Plantões? Apenas nos dias em que não há compromisso do Cruzeiro: “Eu brinco que monto minha escala de acordo com a tabela de jogos”.
Mulher lésbica e amante do esporte, Natália se viu representada pelo time feminino do Cruzeiro – não é segredo como o futebol é um ambiente hostil para tal público. O amor que a médica sentia pelo clube cresceu e virou “força motriz para fazer as coisas na arquibancada”.
“Futebol é minha vida e meia, e o Cruzeiro especialmente. Mas, enquanto mulher que joga bola, enquanto mulher lésbica, eu me sinto extremamente representada. Eu encontrei no Cruzeiro feminino uma coisa que a gente não… Eu não me sentia representada mesmo pelo Cruzeiro masculino. Acho que é isso que é diferente”
Natália Simões, médica
Em cada confronto, Natália ignora a exaustão do dia a dia para depositar energia nas Cabulosas. A princípio, na intenção de mobilizar semelhantes, tirava dinheiro do próprio bolso: “Eu arrecadava dinheiro do meu salário (risos). A partir de um momento ficou inviável, gastava muito para produzir tudo. Bandeiras são caras, instrumentos foram caros. Chegou a um ponto em que minha mulher falou ‘Vamos dar uma segurada'”.
A ‘voz da consciência’ de Letícia Godinho, esposa e também médica, fez com que Natália abrisse vaquinhas na internet para a confecção de materiais e as mobilizações. Exatamente em 17 de agosto de 2024, a fundadora se deu conta de que havia idealizado um movimento. Naquele dia, o Cruzeiro recebeu o Corinthians no Castor Cifuentes, em Nova Lima, e aplicou goleada histórica por 7 a 2, pela 14ª rodada da Série A1 do Campeonato Brasileiro Feminino.
“Quando comecei a acompanhar presencialmente o time feminino do Cruzeiro, me veio a necessidade de termos uma organização enquanto torcida mesmo. Os jogos eram vazios, todo mundo em silêncio, a gente aplaudia na hora que fazia gol e não passava disso. Era muito triste ver as meninas jogando em um estádio vazio, sem graça, sem torcida. Ao longo do ano, a gente foi se organizando, se mobilizando. (Contra o Corinthians) Foi a primeira vez que levei materiais, a gente produziu bandeirão, tirantes que desciam, bandeiras de mão, enfim. De lá para cá, as coisas evoluíram muito”, pontuou.
Para participar do movimento, não há sistema de associação. A Desorganizada Cabulosa não possui CNPJ nem está credenciada no sistema de regulamento de torcidas. Por enquanto, as conversas são feitas por um grupo de WhatsApp. Além de fazer referência ao apelido do time feminino, o nome do movimento tem o propósito de se afastar da tradicional organizada.
Luta contra o preconceito
Natália salienta que violência e qualquer tipo de preconceito não são bem-vindos.
“O termo ‘torcida organizada’ vem com um peso muito grande. A gente vê um movimento de torcida organizada no Brasil e fora que é basicamente uma máfia. A galera não dá nem para se intitular torcedor. Então, o intuito com o termo ‘desorganizada’ foi esse, tirar esse peso da torcida organizada. A ideia nossa é só apoiar as meninas. Não tem nada diferente disso”, destaca.
Ela cita as “regras” a serem seguidas para quem quiser aderir ao movimento: “A gente não aceita músicas homofóbicas, racistas, termos pejorativos a gente tende a não usar. Enquanto o movimento está desse tamanho, a gente consegue controlar bem. Eu espero que cresça, mas que a gente mantenha essa ideia. E as torcidas parceiras do feminino são todas com o mesmo ideal, que é o pessoal do Movimento de Resistência Azul, da Resistência Azul Popular e também pessoal da Rasta”.
Apesar de não haver trâmites burocráticos para oficializar o movimento, Natália tem razão ao dizer que há evolução. Nesse sábado (17/5), a Desorganizada Cabulosa promoveu a primeira caravana, com cerca de 100 pessoas, para um confronto do feminino – contra a Ferroviária, no Castor Cifuentes, pela 11ª rodada do Brasileiro Feminino.
Também houve, de forma inédita, a famosa ‘rua de fogo’ para recepcionar o ônibus das atletas, que curtiram o momento. Byanca Brasil, a ‘culpada por tudo’, parou por alguns segundos e cantou com a torcida. Depois, disse que se sentiu tão acolhida que poderia pular o aquecimento, pois já estava pronta para o jogo.
Em campo, as jogadoras corresponderam. Enfrentaram curto período de oscilação – muito por causa da qualidade da equipe adversária, como argumentado pela meio-campista Gaby Soares -, mas venceram com autoridade por 3 a 1. Com o resultado, o Cruzeiro, líder, manteve a invencibilidade, chegou aos 29 pontos e contou com outros resultados para avançar às quartas de final com quatro rodadas de antecedência.
Presente em todos os jogos, seja na Região Metropolitana de Belo Horizonte ou fora, Natália fez uma promessa ao elenco cruzeirense: “Enquanto eu aqui estiver, enquanto torcida, elas não vão jogar em estádio vazio, não vão jogar em estádio em silêncio mais. Acho que faz muita diferença. Neste ano, a temporada tem sido o que é acho que muito por essa presença maçante do público, e esse apoio que tem sido incondicional nos jogos. Meu desejo é a gente chegar à final do Brasileiro com o Mineirão lotado para ver as meninas jogarem”.
Já garantido no mata-mata, o Cruzeiro ainda tem quatro compromissos pela frente. Dois deles considerados ‘prova de fogo’ – contra Palmeiras e Corinthians – e que podem voltar a ocorrer nas próximas fases.
Natália aproveita para convocar: “O campeonato está só começando, né? Por enquanto, fase classificatória, as meninas estão mandando mais do que bem no campeonato. Vamos apoiar o futebol feminino, vamos apoiar o futebol feminino do Cruzeiro. Tem valido a pena. Elas representam muito e estão dando a vida. Vamos lá apoiar, vem para os jogos, vamos para o estádio, a gente vai estar lá sempre apoiando. Vamos juntos”.
Jogadoras do Cruzeiro agradeceram suporte
Líder dentro e fora de campo, Gaby Soares vive o melhor momento pelo Cruzeiro. Em 2025, soma 11 jogos, três gols e duas assistências.
Sintonizada com a torcida, agradeceu o suporte e, assim como Gabi e Byanca Brasil, pediu oportunidade no Mineirão.
“Legal demais, isso (apoio) dá ânimo para a gente. A gente espera que todos os jogos estejam cheios, com bastante torcedor, isso nos motiva muito. Estar em um estádio grande como o Mineirão, quem sabe, mais para frente, vamos ver. A gente sempre pede o apoio da Nação Azul, e eles estão nos ajudando em campo”, disse Gaby.
Artilheira da Raposa na temporada, com seis gols, Letícia Ferreira conquistou espaço no time comandado pelo técnico Jonas Urias. Assim como Pri Back e Gisseli, lidera a lista de jogadoras que mais atuaram (12 partidas).
A atacante mandou recado aos fãs: “Torcida, primeiramente, quero agradecer a todos vocês pelo apoio que nos dão. É notório o quanto vocês fazem a diferença e nos apoiam. É agradecer do fundo do meu coração. E, realmente, eu fiquei muito maluca”.
Próximos jogos do Cruzeiro no Brasileiro Feminino
- Palmeiras x Cruzeiro – 22/5 – 16h – Arena Barueri, São Paulo – 12ª rodada
- Cruzeiro x 3B da Amazônia – 7/6 – 15h – Arena Gregorão, Contagem – 13ª rodada
- Cruzeiro x Sport – 14/6 – 15h – Arena Gregorão, Contagem – 14ª rodada
- Corinthians x Cruzeiro – 18/6 – 15h – Estádio Alfredo Schürig, São Paulo – 15ª rodada