O defensor Danilo Avelar, do América, publicou uma carta no site The Players Tribune sobre as dificuldades que passou na carreira futebolística. O jogador de 34 anos relembrou o episódio de racismo que cometeu na época em que defendia o Corinthians e revelou episódios de xenofobia sofridos na Ucrânia. Abaixo, veja os principais trechos do texto.
Transferência para o futebol ucraniano
Com 19 anos, eu ganhava 800 reais por mês e disputava o Campeonato Paulista pelo Rio Claro. O time faz uma campanha ruim, é rebaixado. Só que eu me destaco e o César Sampaio [empresário] consegue pra mim uma semana de testes na Ucrânia. O time era o Karpaty Lviv.
Foi a primeira vez que saí do Brasil. Da Ucrânia eu só sabia que fazia muito frio. Quando cheguei, logo aprendi uma palavra nova: xenofobia. Eles realmente não gostavam de jogador estrangeiro lá. Acham que a gente rouba o lugar dos locais no time. Vivi uma semana de terror.
Nos treinos, ninguém tocava a bola pra mim. Quando eu conseguia pegar, vinha carrinho, pisão, cotovelada… Tudo muito violento. O treinador mal me dirigia a palavra. E eu só podia entrar no vestiário depois que os jogadores ucranianos saíssem.
Com o Rio Claro rebaixado e dispensando jogadores, não havia mais espaço pra mim lá nem proposta de time brasileiro. A minha única opção era aguentar a humilhação na Ucrânia e acreditar que aquilo ia passar.
Fui aprovado no teste e me mudei para Lviv. Sozinho. Eu e uma malinha pequena, com as minhas poucas roupas e pertences. O Karpaty ia disputar as eliminatórias da Europa League e precisava de elenco. Só que o lateral-esquerdo se machucou e o treinador me perguntou se eu, que era volante, queria tentar jogar por ali. Foi a primeira vez que ele me perguntou alguma coisa.
Virei titular, avançamos na competição e, na fase de grupos, caímos no grupo da morte, com PSG, Borussia Dortmund e Sevilla. Eu até comemorei o sorteio. Dois meses antes eu estava sendo rebaixado com o Rio Claro no Paulistão, pô!
Estrelas no futebol alemão e retorno à Ucrânia
Aí vem a pausa de fim de ano, o inverno ucraniano, eu volto pro Brasil em dezembro. Fico por aqui e me reapresento ao Karpaty em janeiro para a pré-temporada. No primeiro dia, eu estava jantando, meu telefone toca. Era o César Sampaio: ‘Danilo, arruma tuas coisas que amanhã cedo você viaja pra Alemanha. Você vai jogar no Schalke 04′.
Eu corro na internet pra dar uma olhada no time do Schalke… Neuer. Metzelder. Draxler. Raúl. Huntelaar. Farfán. Só os caras. Meu Deus!
Na manhã seguinte, uma quarta-feira, cheguei em Gelsenkirchen e fui direto pro centro de treinamento. De cara notei a diferença de tratamento e, pela primeira vez na Europa, eu me senti bem. O técnico me deu as boas vindas e quis saber se eu estava treinando, como eu estava fisicamente. Eu só tinha feito um dia de treino depois de dois meses de férias, mas menti: ‘Estou bem, professor. Treinando forte como sempre’.
No decorrer do ano, fiz bons jogos e estava no grupo que foi campeão da Copa da Alemanha e chegou à semifinal da Champions, contra o Manchester United. Terminou o meu empréstimo e eu voltei pra Ucrânia, mas com algo mudando dentro de mim.
Na volta pra Ucrânia, as coisas pioraram. Porque, além de ser um estrangeiro, eu agora era um estrangeiro que tinha jogado na Alemanha, onde o futebol é muito melhor. Daí o boicote dos ucranianos aumentou. O treinador pedia pro capitão reunir o time pra passar alguma instrução e eu não era chamado.
Quando descobria onde eles estavam, eu entrava atrasado na sala e tomava esporro: “Só podia ser brasileiro mesmo”, eles diziam.
Eu morava no mesmo prédio que o lateral-direito, que era ucraniano. Toda manhã a gente descia junto no elevador, eu dava bom dia, o cara não respondia. Íamos pro mesmo lugar, pro CT, e ele não oferecia carona. Como eu não tinha carro, ia de ônibus, me sentindo péssimo, invisível, menor. Quer saber? Chega. Vou acabar com isso.
Na reunião seguinte que eles não me chamaram, eu entrei no vestiário chutando a porta, xingando e metendo dedo na cara: “Por que vocês fazem isso? Eu não vim aqui prejudicar ninguém. Tô aqui pra trabalhar como vocês. Que diferença faz se eu venho de outro país? Eu também quero ajudar o time a vencer e tô dando a minha contribuição pra isso”.
Pedia pro tradutor traduzir e ele falava duas, três palavras. “Porra, mano, traduz tudo, por favor!”. Ele não traduzia, o que aumentava a minha sensação de impotência.
Minha única opção era aguentar a humilhação na Ucrânia e acreditar que aquilo ia passar. No dia seguinte, o presidente do clube me chamou pra conversar. Cena de filme de máfia. Uma mesa gigante, ele sentado numa ponta, dois caras armados na porta.
Eu repeti o que tinha dito no vestiário e expliquei como tudo aquilo me fazia mal, acabava comigo. O que eu tinha feito de errado pra ser tão desrespeitado, tão humilhado?
Apesar de ser um cara durão, o presidente do Karpaty entendeu o meu lado e me liberou para ir jogar na Itália por eu ter sido sincero com ele. Eu ficaria mais cinco anos na Europa, defendendo Cagliari, Torino e o Amiens, da França. Foi o período em que, enfim, desfrutei do futebol.
Passagem pelo Corinthians e caso de racismo
Lembro até hoje das palavras do Andrés Sanchez quando eu cheguei em São Paulo para assinar com o clube. “Se prepara, meu filho. O Corinthians é um foguete, tanto pra cima como pra baixo. Pode te levar pro topo ou pro buraco, não para no meio”, ele me disse. Mas eu tinha certeza de que eu iria bem no Corinthians. O time do coração da família inteira, cê tá maluco… Pai, mãe, dez tios, 28 primos, irmãos, sobrinhos, amigos, todo mundo corintiano.
Me tornei um cara mais confiante, mais tranquilo, me sentia querido pela torcida, pelos colegas. O Corinthians me comprou em definitivo. Os perrengues da infância e da Europa pareciam cada vez menores e distantes. Depois ainda marquei o gol na final contra o São Paulo e, nesse dia, eu tive o choro mais emocionado da vida.
De uma forma idiota e abrupta, o mesmo foguete que tinha me levado ao topo me jogou com tudo num buraco sem fim.
Numa madrugada que parecia outra qualquer de jogo online, eu machuquei pessoas que são machucadas há gerações. Machuquei também a minha família, o meu clube, a minha torcida. Na hora que meu telefone tocou, o dia ainda nem tinha amanhecido, e do outro lado da linha um cara que eu não conhecia disse: “Sou o gestor de crises do Corinthians, só apareço em casos extremos”, eu entendi que a pancada seria forte. E está sendo ainda. Ninguém tinha infringido uma lei tão grave assim num clube de massa.
Se eu lamento? Claro que sim. Eu gostaria de ter sido desde sempre esse cara que eu sou hoje, mais estudado e conhecedor da realidade brasileira. Gostaria de não ter precisado aprender na base da pancada.
Se o clube poderia ter conduzido melhor a situação? Sem dúvida. Quando cheguei na sala da presidência para conversar com a diretoria, já tinha um batalhão de advogados, assessores, dirigentes e eu ali, sozinho. Fiquei ainda mais chateado ao perceber que a preocupação de todas as pessoas dentro da sala era somente dar uma resposta rápida à imprensa. Nenhuma delas se preocupou em saber como eu estava ou em propor uma reflexão maior sobre o racismo.
Comuniquei minha decisão à diretoria, que me instruiu a publicar uma nota fria, sem a aprovação da minha assessoria, me retratando. Confesso que, hoje, eu teria feito diferente. Não tive tempo para pensar e apenas segui as ordens do clube em busca de uma satisfação imediata à opinião pública.
De qualquer forma, o principal é que eu assumi para mim mesmo que havia falhado. Continuei me recuperando de uma lesão no clube, mas nunca mais vesti a camisa do Corinthians. Também assumo a consequência do meu erro e, por isso, não me sinto injustiçado.
Hoje, no América Mineiro, sempre que treinamos no CT do Corinthians antes dos jogos contra times de São Paulo, eu olho para o mural que fica nos fundos com os principais títulos do clube, vejo uma fotona minha do lado do Cássio comemorando o tricampeonato paulista e já me basta. É a lembrança de que também fiquei marcado na história do clube por ter chegado ao topo.
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