Presidente do Ceará, João Paulo Silva se pronunciou oficialmente sobre a acusação investigada pela Polícia Civil cearense de que o clube teria se utilizado do clube com a casa de apostas Estrela Bet, patrocinadora do alvinegro de Fortaleza, para emitir mais de R$ 45 milhões em 85 notas frias em 2023.
As notas eram canceladas até 72 horas depois de emitidas, após serem apresentadas a fundos de investimento como lastro para adiantar valores que o clube, na verdade, não fazia jus a receber. Por isso, a Estrela Bet alegou que o clube cometia crime com a prática e rompeu o contrato.
João afirmou, em post feito nas redes sociais do Ceará, que não emitiu notas fiscais frias, e sim “notas fiscais do clube que representavam os efetivos recebíveis pelo referido patrocínio, conforme contrato assinado entre as partes”.
Veja a declaração completa
Por meio desta nota, venho informá-los que há pouco tempo tomei conhecimento, por um repórter, do andamento de um inquérito policial que investiga uma suposta irregularidade no Ceará Sporting Club; tudo por conta de um vazamento criminoso de dados que foi levado indevidamente à imprensa.
Não posso falar das questões do processo da forma como eu queria, pois fui impedido pelo Jurídico por se tratar de um procedimento sigiloso, no entanto, afirmo que o nosso corpo jurídico competente teve acesso, há poucos dias, ao conteúdo do processo e tomará todas as medidas cabíveis para provar que tudo isso não passa de perseguição política, e buscará também todos os caminhos para descobrir de onde partiram esses vazamentos ilegais, os quais, inclusive, já estão sendo investigados.
O que se teve conhecimento até agora é de que esse vazamento era planejado para o dia das eleições do clube, com a finalidade de interferir diretamente no resultado.
Porém, acerca da matéria veiculada, que aponta equivocadamente a utilização de um contrato com um ex-patrocinador para emissão de notas fiscais “frias” no ano de 2023 com o intuito de servirem como lastro em operações de crédito, buscarei ser sucinto e didático.
Não foram emitidas notas fiscais “frias”, como equivocadamente diz a reportagem, e sim notas fiscais do clube que representavam os efetivos recebíveis pelo referido patrocínio, conforme contrato assinado entre as partes.
As notas fiscais foram emitidas porque o fundo (FIDC) não aceitava somente o contrato assinado para antecipar os recebíveis; exigia que fossem apresentadas as notas fiscais do valor do contrato.
Somente por esse motivo elas foram emitidas. Nem mesmo o patrocinador solicita notas fiscais, além do que o clube goza de imunidade tributária.
Em face da desnecessidade tributária de emitir as notas fiscais, como dito anteriormente que somos imunes, resolvemos cancelá-las pois não teria nenhum efeito comercial ou fiscal.
Talvez o cancelamento das notas fiscais não tenha sido o procedimento adequado. Porém ninguém teve qualquer prejuízo ou ganho em face desse cancelamento. A emissão dessas notas fiscais e o seu cancelamento não interferiu no pronto pagamento dos empréstimos junto aos fundos e nem trouxe qualquer prejuízo para o clube, pois o patrocinador foi substituído por outro de valor superior.
Todas as operações tinham meu AVAL PESSOAL como garantia, demonstrando que as operações foram feitas com responsabilidade e segurança.
É comum no mercado do futebol nacional, os clubes operarem com empresas de crédito fazendo antecipação de recebíveis, que nada mais é do que empréstimos que são quitados com os valores recebidos pelo clube ao longo da temporada.
Frise-se que não há obrigatoriedade para emissão de notas fiscais para os contratos de patrocinadores, sendo uma mera liberalidade do clube.
Por fim, importante frisar que esse assunto foi amplamente discutido em reunião do Conselho Deliberativo do clube e que concluiu-se pela aprovação dos atos de minha gestão e da prestação de contas de 2023.
Não existe nada de irregular! Já visitei pessoalmente todas as autoridades, e deixei todos os meus contatos à disposição para quaisquer esclarecimentos. Sempre estarei à disposição da justiça. Sou uma pessoa séria e honesta.
Reitero meu compromisso incessante de fazer tudo que estiver ao meu alcance para manter o Ceará Sporting Club disputando em alto nível na Série A.
João Paulo Silva
Presidente do Ceará Sporting Club
Entenda a situação
Reeleito presidente do Ceará, João Paulo Silva e outras oito pessoas são investigadas sob suspeita de formação de quadrilha, apropriação indébita e lavagem de dinheiro na gestão da agremiação, que jogará a Série A do Campeonato Brasileiro no ano que vem.
Então diretor financeiro, João Paulo assumiu a presidência do Ceará em março do ano passado, para um mandato tampão em meio a uma crise financeira. Com o clube rebaixado e sem caixa, se valeu do contrato com a Estrela Bet para criar lastro para captação de recursos, ainda que o acordo não envolvesse a emissão de notas e proibisse expressamente a antecipação de valores a receber, como ele fez.
“Tinha uma necessidade do fundo de ter lastro (para a operação). Para confortar essa necessidade do fundo, eu emitia as notas e depois cancelava”, admitiu João Paulo à reportagem, negando que o mecanismo seja um tipo de fraude.
A Estrela Bet disse que não reconhecia as notas e que reclamou reiteradas vezes da prática ao longo de um ano, tendo rompido de forma unilateral o contrato em abril passado. Na notificação obtida pela reportagem, acusou o Ceará de estar cometendo eventual crime.
“As recentes operações de emissão e cancelamento de notas fiscais e a antecipação de recebíveis, no contexto e forma em que foram realizados, violam as provisões contratuais, o artigo 422 do Código Civil e várias outras disposições legais, de natureza cível, fiscal e, eventualmente, até criminal”, disse a Estrela Bet no documento, de 17 de abril.
O distrato ocorreu depois que a Justiça acatou pedido de antecipação de provas apresentado por conselheiros de oposição no Ceará, que conseguiram acesso às notas canceladas. Eles juntaram outros documentos obtidos a partir da decisão e os entregaram a uma auditoria independente.
O relatório dos investigadores aponta que, somente em 2023, o Ceará realizou 40 termos de cessão de crédito, uma espécie de empréstimo, a maior parte deles junto a três fundos da gestora CVPAR -que não é investigada-, antiga patrocinadora do clube, lastreados por essas notas emitidas em contrato com a Estrela Bet, canceladas logo depois.
Em uma operação do tipo, o cedente (neste caso, o Ceará) apresenta documentos que atestam que ele vai receber um valor (por exemplo, R$ 1 milhão) de um sacado (a Estrela Bet). O fundo (CVPAR) antecipa o dinheiro, neste caso concreto pagando R$ 923 mil, aceitando receber, quando o patrocinador fizer o pagamento, o valor integral de R$ 1 milhão, mais juros.
Como era o esquema, segundo investigação
1 – Ceará pede um empréstimo à CVPAR;
2 – Como garantia, apresenta uma nota na qual atesta que tem a receber um valor da patrocinadora Estrela Bet;
3 – Com base nas notas, a CVPAR empresta o dinheiro;
4 – Dias depois, o Ceará cancela a nota usada como garantia
O contrato entre Ceará e Estrela Bet, porém, vedava expressamente a “cessão/antecipação de recebíveis”, de acordo com a patrocinadora. O documento seria de conhecimento da gestora de fundos, segundo pessoas a par das negociações.
Mesmo assim, entre abril e dezembro de 2023, a CVPAR aceitou 85 notas do Ceará emitidas sob o contrato com a Estrela Bet que foram canceladas em seguida.
As notas aceitas pela CVPAR referentes a recebíveis de 2023 e 2024 somam R$ 37 milhões, mas o Ceará só teria direito a receber da patrocinadora no período menos da metade disso, cerca de R$ 17 milhões.
Pelo contrato de patrocínio com a Estrela Bet, o Ceará receberia R$ 5 milhões no segundo semestre de 2023, mas em uma única operação em junho a CVPAR aceitou 15 notas emitidas pelo clube sob o contrato mantido com a Estrela Bet, que somavam R$ 7,5 milhões e foram apresentadas como sendo referentes ao patrocínio até o fim do ano.
O Ceará foi assessorado em todas essas operações pelo escritório de advocacia Vale & Vieira, que pertence ao CEO e fundador da CVPAR, Cláudio Vale Vieira. À reportagem o escritório disse que foi contatado “para atuar como consultor na estruturação de dívidas, captação financeira e acesso a mercado de capitais”.
Por esse serviço, o escritório de Cláudio Vale era remunerado em cerca de 8,5% de tudo que o Ceará conseguia arrecadar com as notas junto aos fundos CVPAR II, Veritá e NSP, geridos pela empresa em que Cláudio Vale é CEO. No total, a Vale & Vieira Advogados recebeu pelo menos R$ 1,9 milhão do Ceará em 2023 graças a essa operação.
A gestora de fundos disse à reportagem que “as operações são legítimas, regularmente lastreadas dentro da política de elegibilidade de créditos constantes do regulamento e foram devidamente liquidadas” e elogiou o Ceará como possuidor de “regular histórico de operações liquidadas, possuindo orçamento e receitas suficientes para honrar os seus compromissos”.
Em razão de dívidas com outros clubes, a Fifa impôs ao Ceará nesta temporada restrições para registrar atletas. Ainda assim, o clube conseguiu acesso à Série A, tendo a CVPAR como patrocinadora na última rodada.
Questionada se tinha conhecimento de que as notas que acolhia eram canceladas depois, a CVPAR disse que o “eventual cancelamento, se não comunicado, não é sabido”, sem explicar se houve a comunicação. “Contudo, operação segue lastreada em contrato e demais garantias.”
João Paulo disse, em assembleia em 30 de abril, que os fundos tinham conhecimento disso. Agora, à reportagem, afirmou que a CVPAR só ficou sabendo da prática já este ano, depois dos fatos narrados na reportagem e antes da fala na assembleia.
“Destacamos que a origem e a solvabilidade dos títulos negociados são de responsabilidade do cedente da operação, que no caso concreto era o CSC, a quem o credor poderá exigir o cumprimento da obrigação de recompra em caso de vício e/ou questionamentos”, afirma a empresa em nota.
À reportagem, a Estrela Bet disse que o contrato foi rompido “de maneira formal e dentro das disposições contratuais previamente estabelecidas e comunicadas ao clube”, reforçando que a confidencialidade contratual impede a divulgação de detalhes específicos.