FUTEBOL NACIONAL

‘E a Bagay’? Música homofóbica viraliza, se espalha por estádios e não chega ao STJD

E a ‘bagay’? Entenda por que música de cunho homofóbico cantada por torcedores de organizada do Vitória não foi denunciada
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E a “bagay”? Nas últimas semanas, uma música de cunho homofóbico cantada por torcedores do Vitória viralizou na internet. Desde 2019, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) criminalizou a homofobia, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) aumentou a fiscalização para tentar diminuir a prática do crime no futebol. Por qual motivo, então, o cântico que ganhou popularidade no Barradão – e se espalhou por outros estádios brasileiros – não foi discutido no tribunal?

Antes de buscar possíveis respostas, é necessário contextualizar. A Torcida Uniformizada Os Imbatíveis, do Vitória, criou a seguinte canção para provocar a Bamor, organizada do Bahia criada em 1978 e registrada entre 1996 e 1997: “Chama Samu, chama Samu, desde 97 a ‘bagay’ toma no c*. E a ‘bagay’? E a ‘bagay’ dá o c******”.

Usado com teor pejorativo, o termo “bagay” faz referência ao nome da organizada. No ano mencionado, Vitória e Bahia jogaram a final da Copa do Nordeste na Fonte Nova. O Leão da Barra venceu a primeira partida por 3 a 0. Na volta, perdeu por 2 a 1. No entanto, a vantagem conquistada no duelo de ida deu o título ao Rubro-Negro.

Cunho homofóbico

Pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a jornalista Rafaela Souza estuda as torcidas LGBTQIAPN+. Em entrevista ao No Ataque, ela explicou que a homofobia se apresenta quando a orientação sexual e o ato sexual são proferidos com a intenção de ofender e inferiorizar alguém ou um grupo.

“Deposito nesse outro tudo aquilo que eu não considero certo. Tanto que ele é gay, que ele pratica certos atos sexuais que não são vistos nessa sociedade conservadora e LGBTfóbica como naturais, nessa logica cisheteronormativa. São esses torcedores dizendo que a outra torcida é inferior a mim”

Rafaela Souza, pesquisadora

Nesta lógica, portanto, a língua é utilizada para distanciar e rebaixar o outro. Na intenção de ofender o rival, determinado grupo projeta em outra torcida o que considera negativo, inferior.

Exemplificar o entendimento de Rafaela não é complexo. O torcedor do Vitória quer se distanciar do Bahia, e vice-versa. Em outros estados, observa-se a mesma necessidade. Em Minas Gerais, por exemplo, o fã do Cruzeiro espera não se aproximar do Atlético. E a recíproca é verdadeira. 

Contudo, esse pequeno recorte não é necessariamente problemático. Torna-se um problema quando termos pejorativos e frases ofensivas ganham espaço. “É uma torcida inferior. Não sou eu, é o outro”, completou Rafaela Souza.

E as denúncias?

Como ato discriminatório em razão da sexualidade, a música fere o artigo 243-G do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD).

A pena prevista é a suspensão de cinco a 10 partidas ou 120 a 360 dias se praticada por qualquer pessoa submetida ao CBJD, além da multa de R$ 100 a R$ 100 mil. Ainda, se praticada de forma simultânea por um conjunto de pessoas afiliadas ao mesmo clube, pode gerar perda de pontos.

A letra mencionada no início desta reportagem viralizou na internet após o primeiro Ba-Vi da temporada, em 18 de fevereiro deste ano. Naquele dia, o Vitória venceu o Bahia por 3 a 2, no Barradão, pelo Campeonato Baiano.

Desse momento em diante, torcedores de diversos clubes passaram a cantar a música durante partidas diante dos rivais baianos. Em jogos contra o Bahia, para “provocar”; em duelos com o Vitória, para reforçar o coro. Foi o caso, por exemplo, de cruzeirenses no triunfo por 3 a 1 sobre o Rubro-Negro, em 28 de abril, no Mineirão, pelo Campeonato Brasileiro.

Mas por que, até hoje, os recorrentes episódios não foram julgados pelo STJD? O caso pode ir à julgamento de duas maneiras: por denúncia de clubes ou de procuradores do próprio órgão.

Procurador-geral do STJD, Ronaldo Piacente disse que a procuradoria pode realizar denúncias em dois momentos: quando o árbitro registra na súmula ou quando há notícia de infração e matéria divulgada pela imprensa. Desde 2019, o órgão da justiça desportiva recomenda que os juízes relatem manifestações preconceituosas.

“O cântico não consta na súmula do árbitro e nem no relatório do delegado de partida. A procuradoria não tinha conhecimento do vídeo (que viralizou), nem sabe a data em que foi registrado. Outro ponto é que o clube adversário não apresentou nenhuma reclamação”, disse Piacente à reportagem.

O que dizem Bahia e Vitória

O No Ataque, então, procurou o Bahia. Questionado se já denunciou a canção ao STJD, o Tricolor de Aço disse que não vai se manifestar: “Tratamos esses assuntos internamente de maneira individualizada”.

O Vitória disse que não foi notificado. O Leão da Barra compartilhou uma nota sobre o assunto. Disse, ainda, que realiza campanhas contra a homofobia, mas não as especificou.

Nota do Vitória na íntegra

“A diretoria do EC Vitória convoca a nação rubro-negra – razão da nossa existência e de nossa recuperação no cenário futebolístico – a evitar certos tipos de comportamento que apresentem contextos tidos como homofóbicos. O clube tem recebido manifestações em decorrência de alguns cânticos durante os jogos, notadamente aqueles realizados no Barradão. Entendemos que se tratam de simples provocações próprias do contexto futebolístico e desprovidas de intenção deliberada de agredir qualquer identidade de gênero, cujo direitos defendemos incansavelmente. Mas, compreendemos, de outro lado, a possibilidade de surgirem interpretações que possam ocasionar prejuízos à nossa instituição”.

Na concepção da pesquisadora Rafaela Souza, o posicionamento do Vitória elucida um problema dos clubes: não querem assumir os termos machistas e LGBTfóbicos. “Não tem um problema, então não preciso combater. É só uma ‘brincadeira’. Não preciso lidar”, explicou a pesquisadora.

Ou seja, há o entendimento de que tais falas não passam de “brincadeiras inofensivas”. De acordo com Rafaela, esse argumento ganha força porque as pessoas não fazem parte dos grupos ofendidos.

Nesta linha, um dos passos propostos pela pesquisadora é tornar os clubes e as federações ambientes mais inclusivos. “Não deveria ter que ter uma pessoa lá para poder falar. Todos nós enquanto sociedade deveríamos nos sensibilizar e combater. O futebol tem um papel muito importante de discutir não só LGBTfobia, mas machismo, racismo e tantas outras pautas sociais. Porque é um esporte que faz parte da vida da maior parte dos brasileiros”, lamentou.

Efeito manada’ e consequências

A pesquisadora identifica três tipos de torcedores. Uns percebem o problema. Outros, no famoso “efeito manada”, sequer raciocinam o que estão reproduzindo. Por fim, alguns justificam como “brincadeira” e minimizam as críticas.

Tais comportamentos, então, ocasionam o afastamento de torcedores que pertencem à comunidade LGBTQIAPN+. 

“O futebol tem essa coisa muito forte da sociabilidade. Eu estou ali no meio da minha torcida, são as pessoas que gostam da mesma coisa que eu. E aí você vai ver a sua própria torcida cantando coisas que são extremamente ofensivas em relação a você e ao que você é. Fica parecendo que você não pode pertencer a essa torcida”, explica a pesquisadora.

Há, ainda, o reforço do pensamento de que tudo pode no futebol: “Quando eu entrar no estádio, posso fazer o que eu quiser. E aí isso vai abrir brecha para que esse tipo de ofensa continue. E quem está tentando mudar é acusado de ser um discurso de ‘mimimi’”, completou.

Novas versões

A música cantada pelos torcedores do Vitória ganhou novas versões, algumas com o mesmo teor. 

Torcedores do Flamengo, por exemplo, parodiaram para ofender o Vasco: “Chama Samu, chama Samu, desde 97 o Vasco toma no **. E o Payet? E o Payet dá o *******”. 

Botafoguenses, por sua vez, criaram outra versão para provocar Gabriel Barbosa, atacante rubro-negro: “Chama Samu, chama Samu, caiu no antidoping com vergonha do piru. E o Gabigol? O Gabigol tem piruzinho”.

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