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‘Longe do Ninho’: leia trechos de livro sobre incêndio no CT do Flamengo

Leia trechos do livro "Longe do Ninho", de Daniela Arbex, que fala sobre o incêndio que vitimou 10 adolescentes no CT do Flamengo
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A jornalista Daniela Arbex lançou, nessa segunda-feira (5/2), o livro “Longe do Ninho”. A obra conta a história do incêndio que atingiu o Centro de Treinamento George Helal, o Ninho do Urubu, no Rio de Janeiro, em 8 de fevereiro de 2019, e matou 10 adolescentes das categorias de base do Flamengo. A tragédia completa cinco anos nesta quinta.

Ao longo de 303 páginas, Daniela recria a trajetória dos garotos que tiveram os sonhos interrompidos pelas chamas que atingiram o CT. Com informações inéditas, a escritora detalhou a investigação, a dor das famílias e expôs a irresponsabilidade de pessoas que estiveram à frente do Rubro-Negro Carioca.

A autora é especialista em contar histórias de vítimas de tragédias, como fez em Todo dia a mesma noite, sobre o incêndio na Boate Kiss, que matou 242 pessoas em 2013; e Arrastados, que trata do rompimento da barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho, em 2019, que vitimou 272 pessoas. Ela escreveu também Holocausto Brasileiro e Cova 312.

Em entrevista exclusiva ao No Ataque, Daniela definiu o incêndio que atingiu o Ninho do Urubu como “tragédia anunciada”. Ela falou também sobre o contato com familiares das vítimas e com os sobreviventes, além de citar a importância jornalística de se criar uma “memória coletiva do Brasil”.

Trechos do livro Longe do Ninho

Leia, a seguir, trechos do livro:

O primeiro contato com os módulos habitacionais destinados à base foi um pouco decepcionante. Em vez de os jogadores serem encaminhados para o Centro de Treinamento 1 (CT 1) — a estrutura seria colocada à disposição das categorias de base a partir de 2019 —, eles foram levados para alojamentos em contêineres semelhantes aos disponibilizados em anos anteriores. A caixa com estrutura de aço, instalada em 2017 no local projetado como estacionamento, tinha capacidade para até 36 atletas distribuídos em seis quartos. Cada dormitório contava com três beliches de madeira. Havia ainda quatro banheiros com quatro pias que ficavam localizadas no corredor da área de convivência. Ao todo, o alojamento media 131,76 metros quadrados, o equivalente a um espaço de 3,66 metros quadrados por jogador.

Longe do Ninho, de Daniela Arbex

Na prática, em apenas um minuto e 28 segundos, o fogo se alastrou. Além das chamas, a fumaça preta tomou conta do alojamento. Em seguida, ocorreram explosões. Dez dos catorze sobreviventes tiveram apenas 45 segundos para fugir do local pela única porta de acesso da estrutura. Depois disso, nenhum garoto conseguiu chegar até a entrada, embora a maioria tenha tentado encontrar a saída.

Longe do Ninho, de Daniela Arbex

Sentindo as forças se esvaírem, Pablo Ruan voltou para a janela e tentou sair mais uma vez. Movido pelo instinto de sobrevivência, decidiu fazer o que parecia impossível: espremer-se entre as grades de alumínio, cujo vão media cerca de 12 centímetros. Com 1,80 metro e 73 quilos, ele forçou a passagem do corpo por entre as hastes, mas a temperatura já estava elevadíssima. Conseguiu enfiar a cabeça. Em seguida, passou o tórax, se lançando para fora do contêiner. Queimado e com ferimentos nas costas, ele se levantou do chão e ainda chamou por Samuel Rosa e Jorge Eduardo. Não conseguiu mais ouvir o som da voz deles.

Longe do Ninho, de Daniela Arbex

Como a grade permaneceu intacta, Cauan percebeu que ele e os amigos não conseguiriam sair. O fogo tinha tomado conta de tudo. Apavorado, ele começou a bater o pé contra a parede do contêiner. 

— Socorro, eu vou morrer aqui! — continuava a gritar.

Longe do Ninho, de Daniela Arbex

O grupo estava acostumado a lidar com cenas dolorosas no dia a dia, mas nada se comparava à morte da esperança. Debaixo daqueles escombros havia o futuro. E ninguém está preparado para enterrar o futuro.

Longe do Ninho, de Daniela Arbex

Horas depois, os corpos de Jorge Eduardo e de Samuel seriam localizados pela perícia, recebendo os números cinco e seis. Em um primeiro momento, eles pareceram estar na posição de boxeador, muito comum entre carbonizados. No caso dos atletas, entretanto, os peritos puderam notar que os corpos deles se fundiram um no outro. Embora Samuel fosse mais baixo que Jorge Eduardo, a perícia percebeu que, na derradeira tentativa de escapar do fogo, Samuel — literalmente — carregara o amigo nas costas.

Longe do Ninho, de Daniela Arbex

Os exames iniciais, feitos com a ajuda dos técnicos de necropsia Maxwell Tostes e Rubens Ghidini, revelaram que, apesar de terem sido expostos a temperaturas elevadíssimas durante o incêndio na madrugada, metade dos dez jogadores do Flamengo morreu asfixiada por inalação de monóxido de carbono. Nos casos em que há falta de oxigênio, a perda de consciência e o óbito acabam sendo quase imediatos. A diretora do IML encontrou sinais de reações vitais às queimaduras de terceiro grau nos corpos de outras cinco vítimas do Ninho do Urubu, como a incidência de bolhas na pele.

Longe do Ninho, de Daniela Arbex

No caso dos 10 jogadores mortos, cinco tinham apenas 14 anos. Quatro estavam com 15. A vítima mais velha tinha alcançado os 16. Tudo lhes foi subtraído, especialmente o tempo. Em média, os adolescentes do Ninho do Urubu tiveram 54 Anos Potenciais de Vida Perdidos (APVP).

Longe do Ninho, de Daniela Arbex

Apesar do vultoso aporte de recursos nas instalações do futebol profissional no Ninho do Urubu, a categoria de base não recebeu a mesma atenção. Entre os anos de 2016 a 2018, os adolescentes foram mantidos nos módulos operacionais em contêineres, apesar das diversas ressalvas feitas pela Promotoria de Defesa da Infância e Juventude e pelo Grupo de Atuação Especializada do Desporto e Defesa do Torcedor, o Gaedest. Desde 2012, aliás, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) já demonstrava preocupação com as condições oferecidas pelo clube aos atletas em formação.

Longe do Ninho, de Daniela Arbex

Mais tarde, o juiz Marcos Augusto Ramos Peixoto, que analisaria a denúncia oferecida pelo Ministério Público contra onze pessoas, classificaria a planta do contêiner onde os atletas dormiam como ‘arapuca mortal’.

Longe do Ninho, de Daniela Arbex

De 1ª de março de 2012 a 8 de fevereiro de 2019, o Flamengo recebeu, por parte do órgãos públicos do Rio de Janeiro, inúmeras oportunidades de se adequar. Já os jovens atletas vítimas do incêndio não tiveram nenhuma chance.

Longe do Ninho, de Daniela Arbex

E, por mais que tenham melhorado o status financeiro, estão privados da convivência com seus amores. Em uma tragédia, os primeiros sentenciados são as famílias. Presas às lembranças, elas se agarram à memória para manter o passado junto de si. Dos filhos que não alcançaram a vida adulta, só o que viram crescer foi a saudade.

Longe do Ninho, de Daniela Arbex

Longe do Ninho, de Daniela Arbex

  • Editora: Intrínseca
  • Livro físico: R$ 69,90
  • Ebook: R$ 34,90
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