Diminuir o tamanho do gol, reduzir as medidas do campo, subtrair tempo do jogo, deixar a bola mais leve… Quando se fala em futebol feminino, várias mudanças nesse estilo são sugeridas para tornar o esporte mais competitivo. Com a proximidade da Copa do Mundo Feminina – que começa nesta quinta-feira (20/7), na Austrália e na Nova Zelândia -, essas e outras questões voltam à tona.
Acompanha essas sugestões de mudança, ainda que de forma implícita, a ideia que sempre permeia o futebol feminino (e os esportes praticados por mulheres, no geral): de que são necessárias adaptações para a prática de um esporte “com a mesma qualidade da dos homens”.
Contudo, focar o debate sobre a evolução do futebol feminino em medidas como reduzir as dimensões do gol ou do gramado é ignorar o fato de que a evolução do esporte passa por alterações mais profundas e estruturais.
Com a Copa do Mundo batendo à porta, é importante entender por que diminuir as medidas do gol não faz sentido e não ajudaria substancialmente na evolução do futebol feminino. Para isso, o No Ataque buscou a opinião de quem trabalha na área.
“O futebol feminino precisa de desenvolvimento”
Coordenadora do Departamento de Futebol Feminino do Cruzeiro, Bárbara Fonseca deixou claro à reportagem o que pensa sobre uma possível redução do gol no futebol feminino: “Sou completamente contra”.
Ela admite que a baixa estatura das goleiras é um problema, mas garantiu que a solução passa por outros caminhos: treinamento e desenvolvimento.
“Desenvolvimento é a chave do futebol feminino. O que a gente entende é que a cada temporada que a gente vence, as atletas que ingressam na prática do futebol feminino estão vindo mais preparadas, mais fortes e com estatura maior. Logo, logo, a gente vai vencer essa dificuldade”, destaca.
Bárbara ressalta que, antes, as meninas com estatura maior não enxergavam possibilidades no futebol feminino e acabavam optando por outros esportes, como vôlei e basquete. Contudo, ela afirma que isso tem mudado.
Diferença “cronológica” entre futebol feminino e masculino
Bárbara Fonseca faz uma comparação do desenvolvimento do futebol feminino com a evolução do masculino, levando em conta a diferença cronológica de evolução entre os dois.
“Se você pegar historicamente o futebol masculino, vai perceber que na década de 1940, 1950, 1960, os profissionais que jogavam futebol eram mais franzinos, mais baixos, com pouca força física, e certamente o desenvolvimento fez com que a gente chegasse ao momento que o futebol masculino vive. Dessa forma, eu também enxergo o futebol feminino”, disse.
É importante lembrar que o futebol feminino foi proibido por muito tempo no Brasil.
Em 1941, Getúlio Vargas assinou decreto-lei que proibia as mulheres de jogar futebol e de praticar qualquer esporte que fosse “incompatível com a natureza feminina”.
“Art. 54. Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompativeis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país.”
DECRETO-LEI N. 3.199 – DE 14 DE ABRIL DE 1941 – CAPÍTULO IX: DISPOSIÇÕES GERAIS E TRANSITÓRIAS
Apenas em 1979, a proibição do futebol feminino teve fim, com a revogação da lei. E só em 1983 o esporte foi regulamentado para a prática das mulheres. Para ter dimensão, quando a Seleção Brasileira masculina era tricampeã mundial, as mulheres ainda lutavam para que pudessem jogar futebol.
A primeira Copa do Mundo Feminina de Futebol foi disputada em 1991, 61 anos depois da primeira Copa masculina, que aconteceu em 1930.
Esse intervalo se reflete em uma grande diferença de desenvolvimento. O futebol masculino teve muito mais tempo para evoluir e se desenvolver profissionalmente.
A opinião de uma goleira
Goleira do time profissional do América, Camila também enfatiza: “Não vejo porque diminuir o tamanho do gol e tamanho do campo”.
“Apesar de termos a estatura considerada baixa, treinamos bem para nos adaptarmos ao tamanho do gol. E isso não faz diferença pra gente, porque depende muito, assim como no masculino, de posicionamento, potência, da força da atleta para poder chegar em determinadas bolas”, disse a goleira.
Letícia lista mudanças mais importantes a serem feitas para a evolução do futebol feminino: “Para mim (diminuir o tamanho do gol, do campo), é algo que não tinha que ser nem considerado, porque há tantas coisas no futebol feminino que precisam ainda ser melhoradas… Mídia, salário, suporte às atletas, estrutura física para as atletas treinarem e se desenvolverem mais no futebol. Faz muito mais sentido do que diminuir o tamanho do gol e do campo, porque a gente treina bastante para nos adaptarmos ao tamanho do gol e do campo, que para mim não faz diferença alguma”.
A importância do treinamento
Técnico do Corinthians, Arthur Elias também discorda da ideia de reduzir o tamanho das traves no futebol feminino.
Multicampeão pelo time paulista, o técnico entende que a evolução das goleiras no esporte depende mais do treinamento do que da estatura.
“Não é só questão de altura. É questão de treinamento, a goleira vai conseguir saltar mais, ser mais ágil, ela está pegando bola também de mulheres, não tá pegando bola dos caras, dos homens. Na média, os chutes também são em velocidade um pouco menor. Então, tudo é proporcional no jogo”, afirmou, em entrevista ao podcast De Lavada.
O treinador do Corinthians fala da importância do treino específico para as goleiras.
“As pessoas têm uma visão errada das goleiras, porque por muitos anos elas não tiveram preparadores de goleiro. Enquanto os homens estavam treinando há muito tempo com preparadores de goleiro. Hoje você tem nos clubes às vezes dois, três, quatro preparadores de goleiro pra treinar todos os goleiros da categoria profissional, as mulheres começaram a ter recentemente. Então, o nível técnico das goleiras está aumentando de forma bem rápida pelo acesso ao treinamento específico”, afirmou ao podcast.
A diferença cronológica entre o futebol feminino e o masculino fica ainda mais evidente na declaração de Arthur. Hoje, as mulheres estão começando a ter acesso a facilidades (treinos específicos, bons gramados e estádios, estruturas melhores) que os homens já têm há muito mais tempo, pois a modalidade masculina não teve os mesmos impedimentos para evoluir e se profissionalizar.
Alterar tamanho das traves ou do campo: logística complicada
Há mais um fator importante a ser discutido: as adaptações sugeridas ao futebol feminino têm logística de aplicação complicada.
“Segrega mais o futebol feminino quando você pensa que tem que entregar outras práticas de esporte, porque precisa ter um campo menor, ou uma trave menor”, lembra Bárbara Fonseca.
Reduzir as medidas dos gols para as goleiras implicaria na fabricação de novas traves. Diminuir o campo exigiria nova pintura aos gramados que já são padronizados.
Nem todo campo seria compatível com tais mudanças. E, normalmente, o futebol feminino é jogado em gramados que também recebem partidas masculinas. Trocar as traves e a pintura do gramado a cada semana é praticamente impossível.
É diferente do vôlei, por exemplo, em que a troca de redes é mais simples e rápida – no vôlei, a rede das mulheres é 19cm mais baixa que a dos homens – e possibilita que um mesmo ginásio receba confrontos femininos e masculinos.
Assim, as mudanças gerariam impeditivos ainda maiores para a prática do futebol feminino em gramados e estádios de qualidade, algo que foi conquistado há pouco tempo pelas mulheres.
O trabalho que as adaptações envolveriam para um campo/estádio receber uma partida de futebol feminino poderia virar um argumento para justificar a recusa em sediar jogos da modalidade.
Como o futebol feminino vai se desenvolver
Entre quem trabalha na área, um consenso: o desenvolvimento do futebol feminino é consequência da evolução dos treinamentos.
O futebol feminino não precisa de medidas como redução do tamanho do gol ou do gramado para evoluir.
A evolução do futebol feminino depende de investimentos que possibilitem as melhores condições para a prática do esporte.