Em meio a boatos sobre uma possível mudança de sede da final da Copa Libertadores, Palmeiras e Flamengo se preparam para disputar a decisão no Estádio Monumental de Lima, em 29 de novembro. O cenário, no entanto, não parece o mais favorável: a capital do Peru vive uma onda de protestos contra o governo e caos na segurança pública, com ações violentas tanto por parte de grupos criminosos quanto das forças policiais.
Em 21 de outubro, o presidente José Jerí – que substituiu Dina Boluarte, destituída pelo Congresso 11 dias antes – declarou estado de emergência em Lima e região. A medida vai perdurar até 21 de novembro, a pouco mais de uma semana da final da Libertadores.
Para entender os fatores que levaram a esse quadro, o No Ataque entrevistou João Carlos Botelho, professor do departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ele detalhou o que motiva a instabilidade política no Peru.
Instabilidade política recorrente
A queda de Dina Boluarte foi resultado de pressão pública após grande onda de protestos iniciada em 20 de setembro, quando centenas de manifestantes participaram de um ato convocado pela Geração Z – pessoas nascidas entre 1995 e 2009 que se organizam por meio de plataformas digitais.
A ação ocorreu na semana em que o Congresso peruano havia aprovado uma lei obrigando os maiores de 18 anos a participarem dos fundos de previdência privada. A medida não agradou aos jovens, que costumam lidar com vagas de emprego precárias e, por vezes, informais.
O protesto também teve como pauta a insatisfação com a corrupção governamental e a violência urbana que assolam o país. Nas semanas seguintes, o apoio aos manifestantes aumentou – no início de outubro, colaboradores do ramo de transporte bloquearam as ruas de Lima por 24 horas, motivados pela revolta com a prática de extorsão por parte de grupos criminosos contra empresas e o assassinato de 47 motoristas entre janeiro e outubro de 2025.
A desaprovação popular com o governo de Dina (que chegou ao patamar de 92%, segundo o Instituto Datum) deu ao Congresso combustível para a votação do impeachment. Em 10 de outubro, frente a acusações do Ministério Público de lavagem de dinheiro e aproveitamento indevido do cargo contra a presidente, parlamentares peruanos decidiram pela retirada de Boluarte.
Doutor em Ciência Política pela Universidad de Salamanca (USAL), da Espanha, João Carlos Botelho explica que os problemas não são recentes. Dos sete presidentes que o país teve desde 2011, três sofreram impeachment, enquanto dois renunciaram ao cargo.
“O Peru tem um problema crônico de ordem institucional. Os partidos são frágeis, surgem e se tornam irrelevantes no intervalo de duas eleições e não conseguem prover políticos minimamente capazes de cumprir funções públicas. A classe política peruana é amadora nesse aspecto e se converteu em uma cleptocracia que ocupa o Estado e os cargos de representação política para obter benefícios privados. Como esse cenário se mantém indefinidamente, os grupos dominantes no Congresso peruano tentam se blindar dos próprios escândalos oferecendo à população, cansada da instabilidade e da carência de serviços básicos, destituições consecutivas de presidentes, também enfraquecidos pelo acúmulo de erros e escândalos”, comentou.
José Jerí e o estado de emergência
Em caminho parecido com o que fez Dina Boularte, que havia chegado à presidência após a queda de Pedro Castillo, José Jerí assumiu o Executivo. A posse do ex-presidente do Congresso, entretanto, não diminuiu a onda de protestos.
Logo nos primeiros dias de governo, Jerí se tornou alvo dos manifestantes. Em um dos atos, foi exibida uma bandeira do Peru com a frase “presidente José Jerí estuprador”. Em 2024, ele foi acusado de agressão sexual por uma mulher, mas o caso foi arquivado por falta de provas.
“Como presidentes são alvos momentâneos, sua destituição, que se define no Peru como vacância, não é suficiente para resolver problemas estruturais e acalmar os ânimos, inclusive porque as/os substitutos trazem consigo seus próprios escândalos. É ilustrativo que os dois últimos presidentes eleitos, assim como seus vices, foram destituídos antes de completar o mandato.”
João Carlos Botelho, especialista em política latino-americana
Foi sob o comando de Jerí que o Peru viveu um dos piores momentos dos confrontos. Em 15 de outubro, um policial à paisana atirou contra manifestantes no Centro de Lima. Um dos tiros atingiu e matou o rapper Eduardo Ruiz Sáenz, conhecido como Trvko. Ficaram feridas mais de 100 pessoas, incluindo militantes e policiais.
Na semana seguinte, foi decretado o estado de emergência na capital e na cidade portuária vizinha, Callao. A medida permite que o governo mobilize militares nas ruas para patrulhar e restringir direitos como a liberdade de reunião – o que tende a coibir a realização de protestos.
Desde então, conforme noticiaram veículos de imprensa peruanos, uma série de prisões ocorreu. Ainda assim, manifestações seguem acontecendo – como o bloqueio das ruas feito por motoristas de ônibus nessa terça-feira (28/10). O condutores preparam uma greve geral para a próxima terça (4/11), novamente em protesto contra as ações de grupos criminosos.
Toque de recolher em Lima
Nesta semana, o prefeito de Lima, Renzo Reggiardo, disse ter sido informado pelo Executivo que as estatísticas de criminalidade diminuíram na primeira semana do estado de emergência. Ainda assim, ele afirmou que discute-se a possibilidade da aplicação do toque de recolher.
O mesmo foi dito pelo Ministro da Justiça do país, Walter Martínez, segundo o jornal Peru 21. No toque de recolher, as pessoas são proibidas de permanecer na rua a partir de determinado horário.
As cenas dos protestos em Lima, no Peru
Protagonismo da Geração Z em protestos
A Geração Z desempenha papel fundamental nas recentes manifestações peruanas. A tendência tem sido observada também em outros países, como Nepal e Madagascar, onde atos liderados por jovens derrubaram governos.
O movimento carrega semelhanças, como a mobilização pelas plataformas digitais e uso de bandeiras de chapéu de palha com dois ossos cruzados, representadas no anime japonês One Piece. O símbolo foi visto também nas Filipinas e França.
“As novas gerações, independentemente da letra que as defina, são as que mais sofrem com a falta de perspectivas. Ao mesmo tempo, estão imersas em um individualismo crescente que contribui para alimentar um repúdio em relação aos canais tradicionais de intermediação política e social, como partidos e sindicatos. O que resta é a revolta, mas sem direcionamento e projeto que a transformem em alternativa política. Quando oportunistas não captam esse sentimento de revolta para projetos personalistas de poder, o resultado é a violência pela violência, o que deixa um vácuo de poder que pode ser ocupado por forças de segurança ou outros grupos armados”, explicou João Botelho.
A final da Libertadores em Lima
Ao que tudo indica, a final da Libertadores será mesmo em Lima – tanto que a venda de ingressos para o jogo entre Palmeiras e Flamengo já começou. Na última semana, surgiram rumores sobre uma possível troca em razão dos conflitos nas ruas.
Governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB) colocou o Estádio Mané Garrincha, em Brasília, à disposição da Conmebol para sediar o duelo. Nessa quinta-feira (31/10), Samir Xuad, presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), informou que apoiará as cidades que manifestaram o desejo de receber a finalíssima.








