Era fim de tarde de uma quarta-feira de 2013 no Tropical Tênis Clube, uma associação de classe média alta em Itaúna, na Região Centro-Oeste de Minas Gerais. Na quadra estavam diversas crianças, algumas delas oriundas de famílias carentes, prontas para iniciar o penúltimo treinamento antes da final do primeiro turno do Campeonato Metropolitano de Futsal Sub-11. A atividade, no entanto, foi interrompida abruptamente quando o pequeno John Kennedy Batista de Souza, um menino de 11 anos talentoso, mas muito arisco, perdeu a paciência com a orientação do professor. Ele mostrou o dedo do meio ao técnico, virou as costas e foi embora para casa.
O treinador do Tropical não titubeou e correu atrás do garoto, que já era conhecido na cidade pelo temperamento explosivo, mas também pelo faro de gols. Ao chegar na comunidade Novo Horizonte, uma das mais pobres do município, onde o garoto morava com os pais catadores de lixo, o professor descobriu que o próprio John Kennedy contou à mãe o que aconteceu no clube. Ele levou uma “coça” da genitora e prometeu um pedido de desculpas ao técnico no próximo encontro.
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“O problema do John não era a violência da comunidade. Um dia, eu chamei a mãe dele aqui no clube e perguntei a ela: ‘Beatriz, você confia em mim?’. Ela respondeu: ‘Confio, por quê?’. Eu falei que ela precisava parar de bater no John um pouco. Aí ela: ‘Mas ele só apronta!’. Disse para ela parar de bater nele porque ele achava que resolveria tudo na porrada”, relembrou Nelson Júnior, professor de educação física, coordenador de esportes do Tropical e um dos primeiros treinadores de John Kennedy, em Itaúna.
“Se algum menino fizesse algum tipo de raiva nele, ele já queria brigar. E por que ele já queria brigar? Porque em casa ele apanhava e achava que resolveria tudo na porrada. Ele era novo e a gente percebia que tinha algum problema nesse sentido e a gente começou a conversar. Ela [mãe] foi diminuindo e ele foi diminuindo as brigas aqui no clube”, prosseguiu.
“Ele era explosivo, sim, mas um menino de coração enorme. Isso nos motivava a seguir. Um dia, falei assim com a mãe: ‘Beatriz, o John nunca vai ser 100% quieto. Mas a gente tem que ir trabalhando para ele melhorar, vai ter castigo, vai ter as coisas… Mas, dentro das nossas limitações, a gente conseguiu fazer com que ele pelo menos não parasse de jogar bola e desse sequência à vida dele”, ressaltou.
Redenção e golaço!
Dois dias depois, quando se reencontraram na quadra para o último treino antes da partida, John Kennedy cumpriu o combinado. Desculpou-se num cantinho com o professor, mas não era o bastante. “Falei para ele: ‘Na hora em que mostrou o dedo, foi na frente de todos, agora que vai pedir desculpas é escondido?'”, questionou Nelson.
Além da retratação diante de toda a equipe, John Kennedy precisou ser aprovado em uma votação para saber se poderia jogar o confronto decisivo. Eram 18 crianças, o professor e uma auxiliar. “Eu votei contra, assim como a auxiliar Thaís Pereira, por causa do ato de indisciplina. O capitão do time, o primeiro menino a votar, foi a favor dele jogar e os demais também deram uma segunda chance”, contou.
Apesar da aprovação, Nelson deixou John Kennedy no banco de reservas para dar uma lição ao garoto. A partida diante do Clube Recreativo Mineiro, de Belo Horizonte, estava empatada por 3 a 3 ao término dos dois primeiros quartos. Foi nesse momento que o garoto predestinado entrou em ação. Marcou três gols, um deles de bicicleta, garantindo a vitória do time de Itaúna por 6 a 3. Ao fim do torneio, o clube se sagrou campeão.
Os ‘Dinizes’ da vida de JK
Dez anos depois, o lado arredio de John Kennedy voltou a ganhar evidência. Dessa vez, no futebol profissional do Fluminense. Como “castigo” por causa de problemas extracampo, o atacante foi emprestado no início de 2023 à Ferroviária, equipe do interior de São Paulo.
Diante da situação, o treinador do Tricolor das Laranjeiras e agora também da Seleção Brasileira, Fernando Diniz, manifestou publicamente a confiança na recuperação de JK. Assim como fez no passado o professor Nelson Júnior, no interior de Minas, o técnico do Fluminense foi atrás da família do atleta para conhecer os problemas e ajudá-lo.
Uma entrevista de Diniz, inclusive, anterior ao empréstimo à Ferroviária, tornou-se emblemática. “Já perdemos muitos John Kennedys por aí e continuamos perdendo. Eu vou fazer de tudo para ajudá-lo para ele poder ter uma vida digna no futebol”, garantiu, em maio de 2022.
A redenção de John Kennedy foi imediata. Na Ferroviária, marcou seis gols em 11 jogos pelo Campeonato Paulista. Mais maduro e comprometido, retornou ao Fluminense após o primeiro trimestre do ano, ganhou espaço na equipe e a confiança de Fernando Diniz.
O jogador novamente estava predestinado. Além de marcar gols importantes para o Tricolor em todas as fases eliminatórias da Copa Libertadores, JK balançou a rede de maneira heroica. Ele é o autor do gol que garantiu o título inédito na vitória sobre o Boca Juniors, por 2 a 1, no último fim de semana, com o Maracanã lotado.
“O Diniz foi muito importante na vida dele nessa transição para o profissional, e nós aqui em Itaúna nesse processo da infância para a adolescência, porque demos os primeiros ‘puxões de orelha’. Eu até me emociono, porque em alguns momentos da vida ele [John] me chamou de pai”, disse Nelson Júnior, às lágrimas.
“O John é predestinado! Deus sempre agiu muito na vida dele. Cuidou e guiou ele muito. Colocou as pessoas certas, na hora certa. Se não fosse o Diniz no Fluminense, John talvez estivesse rodando em clubes do interior sem nenhuma expressão”, concluiu.
Além de Nelson, John teve outro treinador na infância com quem estabeleceu laços quase familiares. Antes de chegar ao Tropical, o garoto jogou em uma equipe curiosamente chamada JK, o time de futsal de um projeto social da própria prefeitura de Itaúna.
Por lá, conheceu o professor Edson Rodrigues, aos oito anos, que também o abraçou ao invés de rejeitá-lo, mesmo com os constantes atos de rebeldia.
“Como ele era muito atrevido, às vezes ele se desentendia com algum menino aqui na quadra. Mas isso foi bem no início, depois ele foi tomando respeito. Mas eu era muito duro com ele também, não dava muito moleza. A partir daí, passamos a ter uma amizade que perdura até hoje”, destacou Edson.
Portas fechadas em BH
Antes do sucesso no Fluminense, ainda na adolescência em Minas, John Kennedy dividia a rotina de treinos entre o futsal do Tropical e o futebol de campo nas divisões de base do América, em Belo Horizonte. No início, ele pegava a estrada e seguia diariamente para a capital mineira de carona com um colega, que também jogava bola nas duas cidades e viajava com os pais.
Contudo, com a transição deles para o sub-14, veio a necessidade de morar de vez em BH. Longe da família e das orientações do treinador Nelson Júnior, o menino não demorou muito para se envolver em um sério problema no Coelho.
“Deu uma confusão lá. Parece que ele brigou com um colega do América e foi dispensado. Não tenho detalhes do problema. Eu não digo que foi uma injustiça, mas poderia ter sido tratado de outra forma. Um menino de 13 para 14 anos, ele precisa ser cuidado. Não é simplesmente dar as costas e mandar embora”, avaliou Nelson.
Rejeitado no América, o garoto de Itaúna conseguiu uma nova chance. Agora, no clube de coração: o Cruzeiro. Entretanto, a sorte parecia não acompanhar John Kennedy. Durante o período de avaliação, aqueles que o haviam dispensado do Coelho foram contratados pelo time celeste. Mais uma vez, ele teve as portas fechadas.
“Nesse dia da dispensa no Cruzeiro, quem buscou o John fui eu. Foi muito triste porque naquele momento eu imaginava que fosse o começo do fim. Para onde que o John vai agora? Ele chorou no carro. Mas o John tinha uma coisa que me preocupava muito enquanto professor e educador. Ele dizia: ‘Eu não tenho plano B. Vou ser jogador de futebol!”.
Pelada mudou o destino
John Kennedy também tentou o Atlético, mas não passou nos testes. O jeito foi voltar para Itaúna, onde não parou de jogar bola. Foi em uma pelada em São João del-Rei, na Região do Campo das Vertentes, que o garoto chamou a atenção do Social Futebol Clube, pelo qual deu sequência à carreira na equipe sub-15.
Ao disputar a Taça BH Sub-17 pelo Social, justamente em uma partida contra o Fluminense, John Kennedy foi bem avaliado por olheiros e seguiu para o Rio de Janeiro. Lá, integrou a base do Tricolor das Laranjeiras até ganhar as primeiras oportunidades no time principal no começo de 2021, aos 18 anos.
“Ele agora é um dos maiores jogadores da história do Fluminense e penso que ele vai marcar o gol da final do Mundial de Clubes”, apostou Edson, o primeiro treinador de infância no futsal.
O gol histórico
O gol que eternizou John Kennedy no Fluminense ocorreu na prorrogação da final da Copa Libertadores, contra o Boca Juniors, no dia 4 de novembro, no Maracanã. O próprio centroavante foi quem preparou o início da jogada ao escorar a bola para o lateral-esquerdo Diogo Barbosa. Ele acompanhou o desdobramento do lance, correu em direção à meia-lua e encheu o pé direito após ajeitada de cabeça do atacante Keno.
John Kennedy marcou 15 gols em 72 partidas oficiais pelo Fluminense – número até aceitável para um atleta ainda em início de carreira e com apenas 25 jogos como titular. E quando se trata de bola na rede, poucos são tão especialistas quanto outro integrante do elenco do Tricolor, o argentino Germán Cano, responsável pelo primeiro tento sobre o Boca (o 13º na Libertadores 2023) e autor de 81 gols em 125 apresentações pelo clube carioca.