Na década de 1958, a hostilidade do futebol, “esporte machista e patriarcal”, foi ignorada por mulheres do Araguari Atlético Clube. Sem pensar em aprovação, a contragosto de alguns, elas vestiram uniformes considerados inadequados, ignoraram a lei, lotaram estádios, foram felizes e fizeram história. Nascia, ali, o primeiro time profissional de futebol feminino. Abram as portas para as mulheres!
Tudo começou em 1958. Na realidade, a história só ganhou força no início dos anos 2000, quando Ney Montes, idealizador do projeto, adoeceu. No hospital, para puxar conversas com a filha Teresa Cristina de Paiva Montes Cunha, o então secretário do Araguari Atlético Clube contou a trama.
O motivo de tanto sigilo? Bom, não custa retornar à introdução deste material. “Nem minha mãe comentava porque na época era tão proibido, contra a lei, que se engavetou. E nem as jogadoras, nem meu pai, nem mais ninguém falou sobre a história”, explicou Tetê Cunha, como prefere ser chamada.
Graduada em Comunicação Social, ela fez do momento com o pai o ponto de partida para resgatar o passado. A pesquisadora quis conhecer a trama e traçar a história do futebol feminino.
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Como nasceu o time feminino do Araguari?
O time de futebol feminino do Araguari nasceu a partir de um acaso que se esbarrou em uma ideia imatura. Os personagens principais: Isolina França Soares e Ney Montes. Ela era diretora da Escola Estadual Visconde de Ouro Preto. Ele, já apresentado anteriormente, dirigente do time da cidade.
A escola gerenciada por Isolina recebia crianças de origem simples e sanava a necessidade de alimentos, roupas, brinquedos e materiais por meio de doações. Estruturalmente, o local também era precário.
Em 1958, a diretora pensou em uma solução diferente para manter a escola. Ela procurou Ney, amigo do noivo Otonite Torres, e pediu que ele organizasse um jogo beneficente para arrecadar fundos. O dirigente, então, propôs algo diferente para os padrões da época: por que não uma partida jogada por mulheres? Ali, ele viu a oportunidade ideal para formar um time de futebol feminino, pensamento que já matutava.
Proposta aceita e martelo batido. O próximo passo era juntar mulheres para jogar em prol da escola. Para isso, os idealizadores organizaram uma peneira com estudantes do ensino médio. Espalharam a novidade como era possível. Ney, também comentarista esportivo e radialista, divulgou o horário da peneira pela rádio. Isolina atuou nas escolas.
E não bastava comparecer no Estádio Vasconcelos Montes na data e no horário marcado. As mulheres precisavam da autorização dos pais ou responsáveis. De qualquer forma, “a peneira foi um sucesso”, afirmou Tetê Cunha. Mais de 40 mulheres, entre 12 e 17 anos, foram ao evento.
Zalfa Nader foi uma das selecionadas. Aos 16 anos, não pensou duas vezes quando ouviu a novidade na rádio. Imediatamente, buscou o responsável pela formação do grupo. Ela, que nunca havia jogado bola, tornou-se zagueira e capitã do time com seus 1,78m de altura.
Sob cautela do presidente Paulo Nogueira Cruvinel, do técnico Luiz Benjamim, do treinador Luiz Teixeira, do massagista José Firmino e de Ney Montes, o primeiro time de futebol feminino profissional foi formado. Nas viagens, além dos integrantes da comissão, o elenco era auxiliado por duas mães, por causa da idade das mulheres, e uma organizadora, a chefe do grupo, que conferia a necessidade das atletas.
Primeiros jogos do Araguari
Elenco formado. Três meses depois da seleção, apita o árbitro! O primeiro jogo do Araguari foi disputado em 19 de dezembro de 1958, no estádio Vasconcelos Montes. O amistoso em prol da escola Visconde de Ouro Preto marcou época e encheu as arquibancadas.
Emoção foi a palavra escolhida cuidadosamente por Zalfa para descrever o que sentiu quando pisou no gramado. “Fomos muito aplaudidas por um campo lotado”, relembrou a ex-zagueira.
Ney Montes tinha planejado tudo para dar alcance ao evento. Ele havia chamado fotógrafos, radialistas e toda a imprensa da cidade do Triângulo Mineiro para cobrir o jogo. A novidade, então, se espalhou para a grande mídia, no eixo Rio-São Paulo.
Depois da estreia, elas deslancharam. Receberam convites e atuaram em algumas cidades mineiras, como Uberlândia e Varginha, até chegarem à capital Belo Horizonte. Não satisfeitas, ultrapassaram as divisas do estado e jogaram também em Goiânia, Itumbiara, Buriti Alegre e Salvador.
O tempo não fez Zalfa esquecer os momentos de felicidade com o clube. Ela lembra com carinho a recepção dos torcedores de cada cidade. “O jogo em Goiânia deixou o público curioso porque não tinha futebol de mulheres. Então os campos ficavam lotados”, relembrou.
Na capital mineira, a história não foi diferente. Lá, jogaram dois times de Araguari. Um vestiu a camisa do Atlético e outro, do América – os maiores rivais na época. Zalfa defendeu o alvinegro e narrou o momento que está gravado na cabeça: “Uma [jogadora] lançou, eu matei no peito. O povo aplaudiu muito. Na época, usava chapéu. Eles jogaram chapéu pra cima, paletó. Foi inesquecível”.
Na Bahia, houve a montagem de um time apenas para jogar contra o Araguari: “A gente foi tão bem recebida que o time fez um desfile conosco na cidade. As ruas de Salvador ficaram lotadas”.
Naquele ano, apesar dos registros escassos, Marcus Borges, atual vice-presidente do Araguari, afirma que as condições do time eram boas. Ele contou que o pai de uma das jogadoras, inclusive, contribuía financeiramente, chegando a doar o terreno do antigo estádio da cidade.
Por que as mulheres do Araguari são consideradas as primeiras profissionais?
Naquela época, como a modalidade “pertencia aos homens”, o jogo praticado por mulheres era atração de circo. Em meio à intolerância, não havia espaço para elas.
Segundo Tetê Cunha, aquelas jovens foram as primeiras profissionais do futebol por terem jogado em campos oficiais com respaldo de um clube credenciado no estado e no país, diferentemente das que atuavam em diferentes tipos de eventos.
A proibição
A euforia durou pouco. Nem um ano. A história iniciada em dezembro de 1958 teve fim em meados de setembro de 1959.
O Araguari já estava vivendo perigosamente. Em 1941, o então presidente Getúlio Vargas promulgou um decreto-lei que proibia as mulheres de praticarem o futebol. O político justificou que o esporte não era adequado à natureza feminina. A nível nacional, restou às mulheres o jogo clandestino, em campos de várzea.
Vale ressaltar que enquanto as mulheres eram impedidas de jogar, a Seleção Brasileira masculina já havia conquistado três edições da Copa do Mundo (1958, 1962 e 1970).
As partidas do Araguari tinham aspecto filantrópico. Todos os duelos beneficiaram alguma instituição. As mulheres sequer recebiam para jogar. Mas de nada serviu. Quando o time do interior de Minas Gerais começou a deslanchar, foi denunciado.
Segundo Tetê Cunha, a equipe “incomodou os tradicionalistas, os machistas, os religiosos, as carolas e assim por diante”. A pesquisadora relatou, ainda, que “alguém ligado principalmente à Igreja Católica Apostólica Romana lembrou do bendito decreto e alertou as autoridades”.
Por pouco, a equipe não teve a primeira experiência internacional. As mulheres receberam o convite para jogar no México, mas não deu tempo antes de serem banidas.
“Eu fiquei triste. Todas ficaram tristes. A gente gostava de sair, de jogar. Todo mundo gostava, tanto a torcida, quanto as jogadoras”, disse Zalfa.
Em 2014, no Rio de Janeiro, ela e outras colegas foram homenageadas no Palácio do Catete. Coincidentemente, no mesmo lugar que Getúlio Vargas assinou o decreto. “Fomos muito aplaudidas”, contou Zalfa. Naquela oportunidade, Marta, eleita cinco vezes a melhor do mundo, assistiu ao cortejo.
Quando o fim foi decretado, os integrantes do time entraram em consternação. A tristeza foi tamanha para algumas mulheres que muitas nem quiseram saber de outra modalidade. Ney Montes engavetou e escondeu todos os registros daquele evento. Por sorte, Tetê Cunha os encontrou.
Além de ter o devido reconhecimento, assistir ao futebol feminino na televisão é o que afaga o coração de Zalfa e das pioneiras. “Eu lembro de tudo que a gente passou. Os jogos que a gente fez foram muito aplaudidos. O povo tinha muito carinho com a gente. Foi muito bom. Dá saudade”, disse a ex-jogadora ao reviver os momentos.
Depois do desmonte, a ex-capitã não retornou ao esporte. Hoje aposentada, Zalfa trabalhou por anos como telefonista.
Ex-atletas (oficiais) do Araguari na década de 1958
O trabalho de Tetê Cunha como pesquisadora da modalidade foi importante para recolher o nome de algumas das jogadoras do Araguari.
- Cirlene Alves dos Anjos – atacante
- Darci de Deus Leandro (in memoriam) – goleira
- Haidée Dália Dias – ponta
- Heloísa Helena Rodrigues Marques – meio-campista
- Iraídes Szabo
- Jaine dos Santos Mendes (in memoriam) – Atacante
- Luci Teixeira Alves Borges
- Maria Aparecida da Costa – volante
- Maria Magali Gertrudes (in memoriam)
- Maura Nader Faria (Marizete) – (in memoriam)
- Mirna Clélia Amaral de Oliveira
- Mirtes Paranhos (in memoriam) – monitora das equipes
- Nádima de Fátima Nascimento
- Neli Ribeiro de Barros (in memoriam)
- Nadir Ramos Rezende
- Nilza de Aguiar Borges (in memoriam) – zagueira
- Ormezinda da Silva Rodrigues – lateral
- Wesleina Campos Mazieiro
- Zalfa Nader Peixoto – zagueira
Atual situação do Araguari
Atualmente, o clube do Triângulo Mineiro passa por uma reestruturação. Praticamente inativo por questões financeiras e com problemas de gestão, o Araguari fechou em 2022 parceria com o Instituto Leões do Cerrado, presidido por Marcus. É a organização que viabiliza a existência do time de futebol feminino.
Ano passado, o clube voltou ao mercado na disputa do Campeonato Mineiro. Como já previsto, o desempenho não foi bom, e o Araguari sequer pontuou. Naquela edição, a intenção era reativá-lo. O que foi feito com a participação de jogadoras experientes, como Pretinha.
Em 2023, a equipe jogará o estadual novamente. Desta vez, além do financiamento do Instituto, há certo apoio da Prefeitura do Município e da rede de supermercados Mart Minas. Vale ressaltar que as atletas não vivem do futebol e o conciliam com outras funções.
De acordo com o vice-presidente, a reestruturação é um processo para um objetivo maior: “Estamos trabalhando nessa reconstrução para que, em 2024, a gente tenha a base e o profissional feminino funcionando. Essa é a meta. Se tornar referência da modalidade no estado”.
Por isso, Marcus Borges deixa claro que o projeto, atualmente, visa detectar novas atletas e não necessariamente brigar pelo título: “Nosso intuito é abrir as portas para mulheres que nunca jogaram estarem no cenário esportivo de alto rendimento”.
Jogos do Araguari no Campeonato Mineiro Feminino
- Atlético x Araguari – sábado (23/9) – 15h – Estádio das Alterosas (SESC Venda Nova) Belo Horizonte;
- Araguari x Uberlândia – domingo (1/10) – 10h – Estádio Vasconcelos Montes, Araguari;
- Cruzeiro x Araguari – domingo (8/10) – 15h – Toca da Raposa 2, Belo Horizonte;
- América x Araguari – domingo (22/10) – 15h – Estádio das Alterosas (SESC Venda Nova), Belo Horizonte;
- Araguari x Nacional VRB – sábado (28/10) – 15h – Estádio Vasconcelos Montes, Araguari.