FUTEBOL FEMININO

Uma por todas: Nicole Rose, a primeira mulher trans a jogar futebol profissionalmente em MG

Atacante do Nacional de Visconde do Rio Branco, Nicole enfrentou dificuldades para realizar sonho de conquistar espaço no futebol feminino

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Com o nome já escrito na história do futebol feminino, Nicole Rose vive sonho no Nacional de Visconde do Rio Branco e é a primeira mulher trans a competir profissionalmente em Minas. A trajetória não tem tom de superação, mas sim de resistência, reconhecimento e ‘missão cumprida’. A atacante buscou a própria identidade em meio a dificuldades e falta de apoio e apostou alto para chegar onde está.

Assista no vídeo abaixo:

O caminho traçado por Nicole no futebol não é uma linha reta e contraria as estatísticas da comunidade, que muitas vezes é marginalizada. De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 90% da população tem a prostituição como fonte de renda no Brasil. Além disso, 0,02% está na universidade, 72% não tem o ensino médio e 56% o ensino fundamental. 

Apesar das curvas, tropeços, impedimentos e outros percalços, Nicole chegou ao Campeonato Mineiro Feminino e pode dar como concluída uma de suas metas. 

Aos 38 anos, achou que o sonho de estar em campo não fosse possível depois de mais de uma década sem jogar bola. Foi o incentivo da esposa que reacendeu a vontade e a busca pelo desejo do passado. Então, ela encontrou no Nacional a chance de viver do esporte e orgulhar a filha, mesmo que a quilômetros de distância. 

Em entrevista exclusiva ao No Ataque, a atacante contou sobre os momentos difíceis que enfrentou para reconhecer a própria identidade, a fase turbulenta com a família e o abandono do sonho em razão das consequências que temia sofrer no futebol. Por fim, revelou sonhos que ainda pretende alcançar e os objetivos da equipe do Nacional no Estadual. 

História no futebol e ‘escape’ no tênis

Nicole Rose, jogadora do Nacional VRB - (foto: Edesio Ferreira/EM/D.A Press)
Nicole Rose durante treino do Nacional VRB(foto: Edesio Ferreira/EM/D.A Press)

O início dessa história se parece com o de muitas outras. Nicole começou a jogar futebol ainda criança, aos seis anos, na cidade natal, Belo Horizonte. Surgia ali o sonho de se tornar profissional e o pontapé para a busca por chances melhores em outros times. 

Em paralelo, o não entendimento com a identidade. Informações sobre a transexualidade não eram tão disponíveis como ocorre hoje, com a internet, e conversar sobre o tema era tabu ainda maior. Mas Nicole já sabia que havia algo ‘diferente’.

“Com 12 anos já me identificava como uma pessoa diferente dos meus colegas, das outras crianças. Não sabia ainda o que era. Na época, não havia rede social, muita informação ou amigos LGBTs para conversar” 

Nicole Rose

Com a angústia de não entender o que se passava internamente, outro esporte entrou na jogada: o tênis. A prática do esporte individual, no entanto, não adiantou muito, e Nicole voltou para o campo. A ‘coroação’ com o primeiro contrato profissional veio aos 20 anos. 

“Com 14 eu volto para as categorias de base, treinando muito forte para recuperar o tempo que perdi e chegar ao profissional. Com 20, cheguei ao profissional para disputar minha primeira partida, nessa época ainda no masculino”, lembrou. 

Sonho interrompido

Quando finalmente chegou onde queria, o sonho foi interrompido por uma lesão. Como se pudesse tirar da dor e da frustração algo de positivo, Nicole aproveitou o tempo em recuperação para, novamente, direcionar energia e reflexão a uma parte da vida que ainda a ‘machucava’.

“Consegui assinar um contrato, disputei as primeiras partidas, e aí rompi o ligamento do joelho. Foi um momento de muita dor, porque tinha chegado no meu sonho e tive que parar. Mas foi um momento de muita reflexão, porque consegui pensar nas minhas questões pessoais, pensar quem eu era.”

A jogadora sabia que, pelas exigências do esporte e a rotina de treinos, seu corpo estava ganhando formas masculinas. Então, resolveu romper com o futebol para se libertar e ir em busca, talvez, de um novo sonho: encontrar e assumir a mulher que sempre existiu dentro dela. 

“Visualizei uma vida muito triste para mim, que eu não sabia nem se eu ia dar conta de levar. Resolvi encerrar a carreira. Não que eu quisesse, mas me assumi como mulher trans e sabia o que isso significava, que era a perda do meu sonho de jogar futebol. Assumi a consequência do viria. Fiquei mais de 11 anos sem chutar uma bola”, falou.

‘Meu mundo foi para um lado, e eu fui para outro’

Nicole Rose, jogadora do Nacional VRB - (foto: Edesio Ferreira/EM/D.A Press)
Nicole Rose durante treino do Nacional VRB(foto: Edesio Ferreira/EM/D.A Press)

O processo de transição não foi fácil. Por mais que fosse aquilo que ela “esperava” – por ter conversado com outras mulheres trans e compartilhado histórias -, a mudança virou a vida de Nicole de cabeça para baixo.

“Quando resolvi me assumir de fato, foi um divisor de águas, muito marcante. Chamei minha família para conversar e explicar que iria me assumir para a sociedade. Ninguém entendeu nada. Foi um momento que precisei sair de casa, para me conhecer e me entender como mulher”, disse.

Se antes ela estava tocando com bandas de rock, em meio a amigos e família, o cenário após assumir a identidade foi outro. Nicole teve que refazer contatos e encontrou apoio na comunidade LGBTQIAP+. Além disso, veio a necessidade de buscar amparo médico. 

“Meu mundo foi para um lado, e eu fui para outro. Fui viver uma vida completamente ao avesso. Virei uma pessoa totalmente sozinha. Fui fazer novos amigos, conversar com pessoas iguais a mim para entender o que precisava fazer, tanto em questões hormonais como sociais.”

Nicole conta que precisou se reinventar.

“Sempre tive estabilidade familiar, e naquele momento estava sozinha. Era o que a maioria das meninas trans sofriam. Encarei e tentei encarar de forma mais natural. ‘Vou ter que me refazer como ser humano’, pensei”

Nicole Rose

Para ela, a parte mais difícil foi a procura por médicos que pudessem auxiliá-la nas questões hormonais. A atacante diz que, na época, chegou a fazer o tratamento quase que inteiramente sozinha, sem orientação profissional. 

“Não sabia por onde começar. Hoje tem tratamento com médico e, naquela época, não. Faz por conta própria. Era o que encontrava. De sete anos pra cá, que tenho acompanhamento”, explicou.

A retomada da carreira profissional contrariou outras histórias da comunidade trans. Em Belo Horizonte, Nicole retornou às quadras de tênis, desta vez como professora. E aí viu que havia chance de voltar à vida de ‘antes’: “Eu tinha possibilidade de ter uma vida normal. Minha parte mental se estabilizou um pouco. Até porque vivi uma nova realidade, saí de uma realidade de outras meninas, que eram mais marginalizadas”. 

Retorno ao campo

A volta para o campo demorou 11 anos. Por mais que estivesse inserida no esporte e reconstruindo a carreira, a vontade de jogar futebol só reacendeu com o empurrão da esposa.

“Fiquei 11 anos sem nem jogar futebol. Conheci uma garota, que hoje é minha esposa. Falava com ela que eu sabia jogar, e ela me zoava muito falando que eu não jogava nada. Ela reacendeu essa chama e falou que ia arrumar uma pelada de futebol feminino. Conseguiu mais tentativa de me zoar, pra ver se eu jogava mesmo (risos)”, comentou.

Foi então que a atacante encontrou o Bharbixas, time LGBT+ de Belo Horizonte, por uma coincidente recomendação do Facebook. A equipe disputava torneios em campos de fut7 e foi a porta de entrada para o retorno aos gramados.

Focada no futebol, Nicole iniciou o tratamento hormonal conforme as orientações do Comitê Olímpico Internacional (COI). Mas o sonho foi interrompido novamente – desta vez, por causa da pandemia de COVID-19.

“Em março, entrou a pandemia e foi tudo por água abaixo. Pensei ‘já era’, eu já tinha 34 anos. Fiquei dois anos sem jogar futebol. Em 2023, pensei em jogar no amador e consegui jogar no feminino.”

Já nas competições da modalidade, a jogadora teve o auxílio da Federação Mineira de Futebol (FMF) para conseguir regularizar cadastro para disputar torneios oficialmente. Depois da liberação da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), veio, finalmente, a sensação de ‘liberdade’.

“Eu tinha um cadastro de 17 anos atrás, com nome antigo. Eles me auxiliaram a resolver para eu poder jogar. Fiz uma rede de contatos e consegui a liberação da CBF para atuar no amador e no profissional. Aí decidi voltar e comecei a procurar oportunidades, com 38 anos”.

Portas abertas no Nacional

A chance de retornar ao profissional veio no Nacional. Nicole precisou deixar a família em BH para viver, em Visconde do Rio Branco, a pouco mais de 260km da capital, na Zona da Mata Mineira, a oportunidade, compartilhando o sonho com outras atletas que formam o grupo.

“Desde que cheguei, sou só mais uma. Elas nunca me trataram diferente, e isso foi muito importante para mim. Porque normalmente sou vista como alguém à parte. E aqui sou mais uma do grupo de 19 atletas”, destacou. “Sou bem quista e recebida. No profissional, pelo Nacional, que comprou a minha briga, é um cenário de sonho. É um sinal do universo me dar uma segunda chance.”

Nicole Rose, jogadora do Nacional VRB - (foto: Edesio Ferreira/EM/D.A Press)
Nicole Rose e outras jogadoras do Nacional VRB(foto: Edesio Ferreira/EM/D.A Press)

A recepção pela diretoria também trouxe segurança a Nicole. Mesmo com medo do que poderia enfrentar, contou com o apoio de dirigentes para bancar a decisão.

“Tive uma conversa com a diretoria , porque era uma situação nova, e deixei claro que precisaria deles fora de campo, porque eu não sabia o que ia vir. Eles me aceitaram e falaram ‘você é uma de nós’. E eles fazem questão de demonstrar isso”, disse.

A cidade e a torcida também abraçaram o time. Nicole contou que vem recebendo o carinho dos torcedores, principalmente os mirins, nas ruas e na arquibancada. 

“Na cidade tem sido bem legal, já encontrei umas cinco crianças na rua que me abordaram e vieram falar comigo. Duas mães já me pararam pra falar que iam trazer os filhos para ver meu jogo. É muito legal essa interação com os torcedores e com o pessoal da cidade”, relatou

Talvez o maior medo fosse a onda de ódio na internet. Contudo, a jogadora se disse surpreendida. O alcance nas redes não trouxe experiências ruins, mas ela se mostrou pronta para enfrentar qualquer coisa.

“Ainda não tive nenhum episódio desagradável na internet, está sendo uma surpresa. Vim com isso na cabeça, que ia ter coisa ruim, mas só vieram coisas boas. Se vier algo coisa ruim, a gente vai lidar”, ressaltou.

Exemplo e inspiração

A luta e a resistência para conquistar o espaço no futebol feminino é um espelho para outras mulheres trans que têm o mesmo sonho e ainda enfrentam barreiras para ingressar no esporte. Se antigamente Nicole não tinha exemplos, hoje ela se tornou um.

“A gente teve um exemplo, a tentativa de uma menina trans jogar há uns três anos. A Sheila, uma goleira, na época teve problemas para seguir. No fim da semana passada, uma menina trans me mandou mensagem falando que foi contratada por um time. Que esse time me viu, e viu que estava tudo bem contratá-la.”

O sucesso dessa negociação – que ela quis preservar nomes para não ‘melar’ – pode ser indício da quebra de preconceitos e melhoria no cenário de pessoas trans no futebol. 

“Em 2023, sou a única que está jogando, talvez daqui a pouco a gente tenha duas. Duvido que em 10 anos vamos ter cinco, porque até gerar uma sociedade para incentivar, vai demorar décadas. Mas já existem pessoas que estão se mobilizando a favor. Isso mostra que  a gente pode estar lá”, opinou Nicole.

O caminho no esporte para mulheres trans é ainda mais difícil. Muitas acabam sendo perseguidas e questionadas sobre o desempenho. 

Relatório realizado pelo Canadian Centre for Ethics in Sport (CCES), publicado no início deste ano, mostra que não existem evidências científicas que provem que mulheres transgênero levam alguma vantagem nos esportes – argumento utilizado por quem se diz contra a presença delas no esporte.

“É muito difícil meninas trans terem empregos convencionais, atletas então. No Brasil, temos três: eu, a Tiffany, no vôlei, e a Maria Joaquina, na patinação. Essas ações e referências vão dando perspectiva para uma menina de 15 anos que está pensando o que vai acontecer com ela. Já está sendo positivo”

Nicole Rose

Novos sonhos 

Nicole já está colhendo frutos no Nacional. Em sua estreia, marcou dois gols e escreveu seu nome na história, no empate diante do Uberlândia, pela primeira rodada do Mineiro Feminino. 

“Quando fiz o primeiro gol no Uberlândia, comecei a chorar. Acho que ninguém viu, porque foi muito rápido. O mais importante era o juiz apitar, e eu jogar. Fiz o gol, caíram algumas lágrimas, limpei rápido, mas foi muito especial. Depois fiz outro e todo mundo veio me abraçar”, relembrou.

Agora, o sonho é poder continuar no futebol. Com as portas abertas, a atacante mantém os pés no chão. Sabe que não é fácil e ainda tem o lado familiar para conciliar as decisões: “Sonho continuar jogando, uns três ou cinco anos. Tenho 38, mas tenho condições. Mas tenho uma esposa, uma filha de 3 anos e vou precisar de uma oportunidade específica. Não posso ficar longe da minha família. Vou correr atrás disso”.

A busca por novas realizações, inclusive, passa por desejos pessoais. O primeiro deles envolve a filha. Além de exemplo para outras atletas, Nicole quer dar orgulho para a família: “(Sonho) Ver minha filha crescer e ter orgulho do que estou fazendo. De ver que a mãe dela, com 38 anos, chegou e está jogando. Ela nunca vai poder desistir de nada na vida dela, por idade, nem por nada. O que estou fazendo pode dar esperança para ela”.

Para o restante do campeonato, os pés continuam no chão. Na disputa contra Atlético, América, Cruzeiro, Uberlândia e Araguari, a missão do Nacional é conquistar vaga para o Campeonato Brasileiro A3. Pessoalmente, Nicole mirou outra meta: a artilharia.

“Somos conscientes. Montamos um time há um mês e estamos enfrentando times que estão jogando há meses, com estrutura. Temos um time modesto, que treina muito, mas que tem poucas jogadoras”, ressaltou, sem deixar, contudo, de estabelecer um objetivo.

“Não estamos entrando para vencer o campeonato, óbvio que à medida que avançamos, o objetivo aumenta. Mas hoje é buscar vaga para o Brasileiro, para o clube receber mais atenção e investimento. E um objetivo pessoal é ser artilheira”, disse, com a experiência de quem já superou muitas barreiras e aprendeu que é preciso acreditar.

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