AMÉRICA

América: os 20 anos do fim trágico de Claudinei, talento ofuscado pela indisciplina

Volante era apontado como 'melhor que Gilberto Silva', mas se perdia na noite constantemente; Claudinei foi assassinado em 2004
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Muito técnico. Grande força física. Passe apurado. E ainda alegre e extrovertido. Com essas características, parece quase impossível que um jogador não se torne um grande nome no futebol nacional. O futuro brilhante era coisa de destino para Claudinei, que defendeu América e Cruzeiro entre o fim da década de 1990 e o início dos anos 2000. O volante, contudo, não teve o tempo desejado nos gramados e faleceu precocemente em assassinato traumático para amigos e família há exatos 20 anos.

O dia 6 de novembro de 2004 foi um susto. A carreira promissora de Claudinei ganhou um ponto final de supetão, com um tiro na nuca. O jogador de 26 anos se divertia ao lado dos amigos, em um evento de pagode na Via Expressa, na Região Oeste de Belo Horizonte, quando um confronto entre gangues ligadas ao tráfico de drogas começou por volta das 2h da manhã. Os envolvidos na confusão atiraram a esmo.

No dia seguinte, em Mário Campos, cidade localizada a quase 50 quilômetros da capital mineira, o clima soturno tomou conta. O volante Ricardo, o diretor de futebol Alexandre Faria e outros atletas não seguraram as lágrimas ao ver o corpo do companheiro de América sendo velado na casa humilde em que a família morava. No quarto ao lado da sala, dona Izabel Francisca Dutra, mãe de Claudinei, estava inconsolável e precisou do amparo dos familiares.

Mesmo que tenha partido de forma precoce, Claudinei deixou boas memórias. Ao No Ataque, os discursos foram unânimes ao descrever o jogador. Apesar das questões de indisciplina, o volante tinha talento que lhe fazia se sobressair em relação aos demais. Ele defendeu o América em 118 jogos de 1998 a 2002 e entre 2003 e 2004, com cinco gols marcados. Também passou por Cruzeiro e Helsingborg, da Suécia. E tinha possibilidade de se transferir para o Atlético em 2005.

Nível Seleção Brasileira

“Eu achava ele mais jogador que o Gilberto Silva”. Foi assim que Flávio Lopes, técnico do América no início da década de 2000, falou de Claudinei. Ele foi o responsável por levar o camisa 8 ao profissional. Depois de se destacar no comando do time nos torneios de base, o técnico foi convidado a integrar a equipe principal. Além de Claudinei, subiram à equipe principal atletas como Ruy Cabeção, Tucho e Fabrício.

Claudinei em treino no Lanna Drumond em 2004 (Jorge Gontijo/EM D.A Press)

Desde aquela época, os problemas de indisciplina de Claudinei já eram recorrentes. De acordo com o técnico, o comportamento afetava até mesmo um grave problema de saúde do jogador, que tinha epilepsia, mas frequentemente se esquecia de tomar os remédios controlados.

“No CT já vi crise dele (de epilepsia), que nós tivemos que administrar. Quando acontecia, ele levava mais ou menos 48 horas pra recuperar, porque a crise era muito forte. Às vezes, ele esquecia de tomar o medicamento. Aí quando ele esquecia de tomar, não podia nem treinar. Ele não se cuidava tanto. Porque se ele se cuidasse mais, era jogador de Seleção Brasileira, sem dúvida. Houve uma época no profissional em que eu tive dúvida entre ele e o Gilberto Silva”.

Flávio Lopes, ex-técnico do América

Para o ex-jogador Ricardo Luiz, que fez dupla de volantes com Claudinei a partir de 2001, a preocupação também era frequente. A proximidade dos dois se tornou natural pela similaridade das posições em campo, além da convivência diária. O carinho pela história e amizade permanece até os dias atuais. Durante a conversa, o atual coordenador das categorias de base do Sport chamou o amigo apenas pelo apelido “Nei”.

“Depois de um tempo a gente começou a concentrar junto, então a gente dividia quarto. O Nei era um cara muito tranquilo. Ele fazia muito mal para ele, mas para a gente que era próximo, ele era um cara muito alegre, extrovertido. Ele não se preocupava muito com carreira, com o futuro. Lembro quando a gente ia concentrar, eu tinha muito medo dele passar mal. Eu decorava qual era o quarto do Silvio (massagista) para pedir ajuda. Aconteceu algumas vezes de eu ter que ligar para ele”, relembrou.

Os casos de indisciplina

Atrasos nos treinos, condução de veículos sem carteira de habilitação, envolvimento em acidentes automobilísticos e fugas para baladas antes das concentrações. A indisciplina foi um fator prejudicial à carreira de Claudinei. Ainda que os episódios fossem recorrentes, ele tinha apoio e recebia constantes conselhos dos amigos e do próprio treinador em relação ao comportamento.

“Existem profissionais que não se cuidam e que não são boa bisca, como se diz. Ele não, ele era um cara doce, um cara bacana, mas tinha essas indisciplina. Uma vez, na Taça São Paulo, estávamos concentrados no Pacaembu. O banheiro era para toda a equipe, aí eu senti um cheiro de cigarro, quando fui ver o que era, ele estava fumando. Falei com ele, não puni, porque ele não era uma má pessoa. Ele fazia mal só para ele. Sempre tentei mostrar um futuro profissional e pessoal para ele”, contou Flávio Lopes.

Em tom de brincadeira, Claudinei recebe “puxão de orelha” de José Ângelo, técnico do América em 2003 (Euler Junior/Estado de Minas)

Tanto para Flávio quanto para Ricardo, as polêmicas do jogador nunca afetaram ninguém. Pelo contrário, entre os jogadores, Claudinei era amado por todos. Dentro de campo, nunca entrou em confusões ou discussões com superiores. Todavia, os conselhos não eram levados em consideração fora das quatro linhas.

“Fomos fazer um jogo uma vez e ele não apareceu na concentração (risos). E aí eu lembro que a comissão colocou gente para correr atrás dele pela cidade. E achou ele no local, quando ele viu, ele saiu correndo, para fugir. Mas voltou, chegou de madrugada, jogou no outro dia, foi o melhor em campo”, falou Ricardo.

“O Nei não tinha uma maturidade pra entender a gravidade desses atos. Tudo que você falava com ele, ele ficava calado, baixava a cabeça, aceitava numa boa. Ele escutava, mas a gente sabia que na hora que ele saísse dali, nada ia ser cumprido. Ele vivia muito o momento. A carreira dele, a nível financeiro, tudo isso pra ele era muito intenso. Ele não fazia contas para frente do que seria a vida dele pós futebol, pós-carreira”.

Ricardo Luiz, ex-volante do América

América campeão mineiro em 2001. Em pé: Adenilton Soares (preparador físico), Wellington Paulo, Michael, Ruy, Thiago, Claudinei, Fabiano e Tim Maia (segurança); agachados: Edson, Ricardo, Fabrício, Tucho, Rodrigo e Silvio (massagista). Foto: Washington Alves/Light Press

Claudinei no Cruzeiro

O América ainda tinha esperanças em ver Claudinei tomar juízo. Assim, em 2003, concordou em emprestar o jogador ao Cruzeiro, recebendo em troca o lateral-esquerdo Rondinelli, o meio-campista Leandro Gaviolle e o atacante Leonardo.

“Nunca foi interesse esportivo do América abrir mão do Claudinei, mas a proposta do Cruzeiro foi financeiramente interessante. O clube estava num momento financeiro difícil, jogando a Série B. A negociação se arrastou muito tempo. Ele teve um destaque enorme, foi campeão mineiro com uma atuação fora do normal. Em 2001, na Série A, apesar do resultado coletivo ter sido ruim, ele fez uma boa temporada, 2002 ele seguiu com muito destaque. O Luxemburgo (técnico do Cruzeiro na época) era muito impressionado, adorava o Claudinei”, relembrou Alexandre Faria, diretor de futebol do Coelho na época.

Na Toca, Claudinei foi recepcionado pelo zagueiro Thiago, com quem havia jogado no Coelho em 2000 e 2001. Sua apresentação ocorreu no fim de janeiro, época em que o clube também confirmou o goleiro Artur (Paulista), o lateral-direito Maurinho (Santos) os meias Sandro (Criciúma) e Martinez (Guarani) e os atacantes Aristizábal (Vitória) e Mota (Ceará).

Claudinei em apresentação no Cruzeiro (Paulo Filgueiras/Estado de Minas)

O fato de o técnico Vanderlei Luxemburgo ter aprovado a contratação de Claudinei surgiu como esperança para todos que admiravam seu futebol. Entretanto, o comportamento extracampo do jogador se agravou ainda mais na Raposa, a ponto de o atleta ter sido devolvido ao América no primeiro semestre.

“Na época, me falaram que deram quase R$ 100 mil na mão do Claudinei. Ele gastou tudo em uma semana. Então, ele começou a chegar atrasado, com más companhias. Lá no Cruzeiro foi muito mais forte. Eu fiquei sabendo que o problema foi muito maior. Lá, eles não sabiam da vida dele. No América tinha uma consideração maior por ele”, disse Flávio Lopes, ex-técnico do Coelho.

Mesmo que tenha jogado pouco, Claudinei integrou o elenco campeão da Tríplice Coroa em 2003. Ele disputou nove partidas naquele ano – cinco no Campeonato Mineiro, duas na Copa do Brasil e duas no Brasileirão.

A família

Se tornar um grande jogador era um status que daria a Claudinei e a família uma nova vida. A humilde descrita pelos amigos vem de casa. Sem muito estudo, o volante tinha nas mãos a oportunidade de dar melhores condições aos pais por meio do futebol. No entanto, não houve tempo para deixar legado financeiro.

Registro feito pelo Estado de Minas da casa da família de Claudinei em Mário Campos, no ano de 2001 (foto: Paulo Filgueiras)

Para dona Izabel, de 76 anos, a data é muito sensível. A família ainda reside em Mário Campos, na mesma casa em que Claudinei morou. Marlon, filho do volante do América, tinha apenas seis meses quando perdeu o pai. Hoje, aos 20, ainda mora com a avó e recorre às fotos e às histórias contadas por parentes e amigos para amenizar a ausência física de seu genitor.

Marlon não seguiu os passos de Claudinei no futebol. A avó não poupou elogios ao jovem, a quem considera um “neto de ouro”. Segundo Izabel, ele trabalhou durante um tempo e parou de estudar, mas ajuda nas tarefas de casa. Recentemente, o rapaz teve o carro roubado, o que dificultou no emprego.

“Eu tinha um ótimo filho. Toda a família gostava muito dele. Ele era muito bom dentro de casa, amoroso, alegre. Ainda me dói muito lembrar de tudo. O filho dele ainda mora comigo. Agora está parado, mas é um neto muito bom, tem muita lembrança do pai por escutar as histórias”.

Izabel Francisca Dutra, mãe de Claudinei

Notícia traumática

O trauma da notícia foi um baque para todos do América, já que o clube foi responsável por formá-lo como jogador. Na época do assassinato, Claudinei tinha deixado o Helsingborg, da Suécia, e retornado a Belo Horizonte para definir o futuro no América. Os rumores eram de que ele estava a caminho do Atlético.

“Lembro que eu estava indo para o treino, no caminho ia deixar meu carro numa concessionária. O Silvio, massagista, me ligou e falou ‘tenho que te dar uma notícia não muito boa, mas fica firme, o Nei faleceu’. Eu falei ‘está brincando’. A gente tinha uma relação muito próxima. Foi uma notícia indesejada e impactante. Na hora você meio que não acredita. Foi muito traumático”, começou Ricardo, ao lembrar do telefonema pelo qual soube da morte do amigo.

“Passou um filme na cabeça que ele era a pessoa que talvez faria diferente na história da família dele, poderia traçar uma história diferente. Não teve um ali da nossa turma que não chorou. Ele tinha um futuro brilhante pela frente, tinha total condição de dar um futuro diferente para a família dele”.

Ricardo, ex-jogador do América, sobre Claudinei

Momentos inesquecíveis

Claudinei Dutra de Resende nasceu em 22 de maio de 1978. Ainda garoto, jogou na base do Atlético. Depois, ingressou no América. No profissional do Coelho, foi peça importante na conquista da Copa Sul-Minas de 2000 e do Campeonato Mineiro de 2001. Houve tempo para que ele integrasse o elenco multicampeão do Cruzeiro em 2003.

Elenco do América campeão da Copa Sul-Minas em 2000. Claudinei é o quarto sentado da esquerda para a direita (foto: Osmar de Paula)

Veja a seguir alguns momentos inesquecíveis do jogador:

  • Golaço contra o Botafogo: pelo Brasileirão de 2000, Claudinei arrancou do meio-campo, livrou-se da marcação de um adversário e soltou a bomba no ângulo esquerdo do goleiro. O América venceu a partida pelo placar de 5 a 2.
  • Assistência na final do Mineiro: na vitória do América sobre o Atlético por 4 a 1, pelo primeiro jogo da decisão do estadual de 2000, Claudinei protegeu a bola na lateral direita, fez o drible de corpo no meio-campista alvinegro Rolete e deu passe para o atacante Rodrigo fazer o terceiro gol do Coelho.
  • Decisão da Sul-Minas: Claudinei puxou contra-ataque no jogo contra o Cruzeiro e deu ótimo passe para Zé Afonso, que levou a bola até as proximidades da área e sofreu a falta – o árbitro Paulo César de Oliveira deu pênalti. Porém, Pintado cobrou para fora. A chance desperdiçada não teve tanto peso porque o América logo depois marcou o segundo gol, em bela jogada do atacante Álvaro, e venceu o clássico por 2 a 1.

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