VÔLEI

Além de Tifanny: teste de gênero constrangeu atleta no Mundial de Volei em BH 31 anos atrás

No Ataque relembra o 'caso Chang', em 1994, e traz especialista para debatê-lo junto ao 'caso Tifanny', no Mundial de Clubes de Vôlei de 2025

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Trinta e um ano depois, a história parece continuar a mesma. Nesta terça-feira (10/12), dia de estreia do Mundial de Clubes Feminino de Vôlei, no Ginásio do Pacaembu, em São Paulo, uma personagem marcante não deve estar presente em quadra: a oposta Tifanny, do Osasco, primeira e única mulher trans a jogar e a ganhar a Superliga.

Ícone do time paulista, a atacante de 41 anos ficou de fora da lista preliminar de inscritas para o torneio porque a Federação Internacional de Voleibol exigiu “mais testes” – sem detalhar a solicitação – para permitir a participação dela na competição. Conforme apurou o No Ataque, até o momento os resultados desses testes não saíram, e tudo indica que a tocantinense sequer jogue o Mundial.

Rifanny iniciou a carreira no vôlei masculino, mas se submeteu formalmente ao processo de transição de gênero no final de 2012, fora do Brasil. A atleta fez dois procedimentos cirúrgicos e a tratamento hormonal para diminuição dos seus níveis de testosterona, o principal hormônio sexual associado ao sexo masculino.

Em 2017, a FIVB autorizou a oposta a jogar em campeonatos femininos regularizados pela entidade e, desde então, ela faz exames regulares, que atestam que ela está bem abaixo do nível máximo permitido de testosterona por litro de sangue.

Tifanny não é a única

Há 31 anos, no Mundial de seleções de vôlei de 1994, em Belo Horizonte, uma atleta passou por caso parecido com o de Tifanny.

Melhor jogadora da Seleção da Coreia do Sul à época e chamada de “diabinho” por Bernardinho, que treinava a Seleção Brasileira Feminina de Vôlei, a ponteira Yon-Hee Chang – uma mulher cis – foi surpreendida pouco antes da estreia da Coréia do Sul.

Chang foi impedida de jogar porque a FIV (sigla da Federação Internacional de Voleibol) à época não aceitou o “atestado de feminilidade” que havia sido apresentado por ela. Ela deixou o ginásio do Mineirinho chorando e foi levada ao pronto socorro da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) para fazer outro “teste de gênero”, feito por meio da coleta da saliva e da análise de DNA.

Sem a ponteira, a Coreia do Sul perdeu por 3 sets a 0 a estreia para a Alemanha, em meio aos protestos da Federação Coreana de Vôlei, que chegou a enviar ofício à FIV. No dia seguinte, Chang foi liberada para jogar após ser arovada no teste. “”Nunca fui tão humilhada em minha vida”, afirmou a jogadora à época.

Relembre a história por meio das matérias da época – nos dias 22 e 23 de outubro de 1994 – feitas pelo repórter Ivan Drummond, que acompanhou a situação de perto na época. Ivan também relatou ao No Ataque os bastidores do caso.

“Na primeira rodada do Mineirinho, quando a Coreia do Sul entra, faltava uma jogadora. Isso não acontecia de jeito nenhum, eram sempre 12. Foram 12 inscritas. Mas faltava uma jogadora. Aquilo a gente intrigou todo mundo que estava cobrindo. Aí aquele negócio, ‘o que aconteceu, o que é, o que foi’, falaram que era um problema de saúde, mas não especificaram. Eu fiquei com aquilo encucado na cabeça. Eu peguei e falei, não, tem alguma coisa errada. Eu vi uma ambulância saindo da parte de baixo, no Mineirinho, e fui atrás da história. Acabei no pronto-socorroda Faculdade de Medicina. A jogadora coreana, dizia-se que ela era suspeita de ter ‘os dois sexos’. Ela teve que fazer exame e não jogou mais até o resultado do exame ficar completo. Deu que ela ‘era mulher’. Mas a Coreia do Sul jogou com 11 ao invés de 12. E ficou essa história que ilustrou o Mundial de Vôlei aqui em Belo Horizonte.”

Ivan Drummond

Especialista opina sobre casos Chang e Tifanny

Doutor em Estudos de Gênero pela Universidade Federal de Santa Catarina e especialista nos estudos de gênero e sexualidade no esporte, o pesquisador e professor de Educação Física Wagner Xavier de Camargo opinou sobre ambos os casos em entrevista ao No Ataque.

“A possível proibição da Tiffany nesse Mundial embra muito o caso da atleta sul-coreana no Mundial de 94. no Brasil. Ela precisou fazer testes emergenciais no Hospital de Belo Horizonte para provar que ‘era mulher’. Claro que era outro contexto, era outro outro momento. Havia uma persecutidade em relação a mulheres que não apresentavam fisiologia ‘apropriada’, que não tinham um genótipo de mulheres”, iniciou Wagner.

“O Comitê Olímpico Internacional parou de fazer os testes de feminilidade, de gênero, em 1999, mas isso não significa que a desconfiança sobre corpos de mulheres que supostamente não seriam de mulheres, não tenha continuado. Esse caso ficou marcado na história do vôlei. Claro que a Chang teve que provar que era mulher dentro de um contexto de perseguição a corpos de mulheres. A Tifanny é uma pessoa trans, e não tem que provar nada, o princípio básico de uma pessoa trans, quando ela informa que é trans, não importa se a voz é grossa, se tem peito, se tem os órgãos sexuais ‘de origem’, importa o que ela está anunciando. É assim que olhamos com olhos humanistas”

Wagner

“Os órgãos de controle do esporte tinham que achar algum vilão. A grande vilã da história ‘da Tifanny’ foi a testosterona, que é um hormônio produzido por corpos de homens e mulheres, com maior e menos variação, dependendo de anomalias que possam afetar o organismo, mas que foi tomado como méttrica para permitir ou não de participar das competições”, prosseguiu o professor.

“Apesar de os testes de feminilidade não existirem na prática, na teoria ainda não deixaram de se fazer presente por afastamentos inexplicáveis. O que me faz pensar que a política da FIVB está totalmente alinhada com a do Comitê Olímpico Internacional e com as outras federações e confederações. Esses organismos do esporte não ‘quetem problema’, explicou.

COI é o ‘grande vilão da história’, para Wagner

Para Wagner Xavier, o Comitê Olímpico Internacional é o “grande vilão da história” na medida em que, com o lançamento de documento no final de 2021, abriu mão da possibilidade de pensar coletivo com as federações para deixar que cada entidade esportiva decida com base nos seus próprios interesses.

E a FIVB parece já ter escolhido um caminho. Nos últimos meses, não têm sido raros casos de atletas submetidas a “testes de gênero”. Em agosto, a Seleção do Vietnã foi excluída do Campeonato Mundial Feminino Sub-21 por escalar uma jogadora “inelegível” – não citada nominalmente – após investigação da entidade, infringindo o Artigo 12.2 do Regulamento Disciplinar de 2023 da FIVB.

A decisão foi comunicada horas depois de o site Volley Trails, que acompanha in loco o campeonato na Indonésia, reportar que as jogadoras Dang Thi Hong e Nguyen Phuong Quynh foram exigidas pela FIVB a fazer testes de gene SRY para identificar uma suposta presença do cromosssomo Y.

Uma semana depois, a oposta Nguyen Thi Bich Tuyen, estrela da Seleção prineipal de vôlei do país, pediu dispensa do Campeonato Mundial três dias antes do início do torneio.

Capitã da equipe, a atacante de 25 anos apontou como motivo principal para a desistência os “novos requerimentos” da Federação Internacional de Voleibol (FIVB) para a elegibilidade das atletas, considerados por ela injustos e sem “transparência”: “Para proteger minha integridade e evitar riscos desnecessários para o time, decidi me afastar.”

“A culpa disso tudo, não só do caso da Tiffany, como de outras mulheres trans ou então hiperandrogênicas, que produzem muita testosterona, é do COI. No apagar das luzes de 2021, é lançado um documento chamado ‘Eenquadramento técnico sobre equidade, inclusão e não discriminação na base da identidade de gênero e das variações sexuais’. Isso passou para a imprensa e a população como ‘princícpios’, mas na verdade é um ‘framework’, uma determinação, o COI classifica os corpos e ‘tira o time dele de campo’, iniciou.

“Joga a bomba, diz ‘vamos ser mais justos’, mas é uma cortina de fumaça para deixar sob responsabilidade das federações e confederações a decisão sobre corpos trans e com variações de intersexualidade. Quando o COI abre mão de uma negociação possível em conjunto, ele joga as pessoas ás feras. Então, o grande vilão dessa história é o COI.”

Wagner Xavier

Wagner rebate críticas preconceituosas a Tifanny

“Quando ouvimos argumentos contra a presença de atletas como Tifanny, lembramos que o esporte não gosta de ver corpos que saem das normativas de gênero. É orientado por uma divisão categórica de masculino x feminino. Quando um corpo mescla esses gêneros ou se desidentifica com eles, começa a apresentar um problema para o sistema, porque não tem categoria para enquadrar. O esporte se mantém fixo numa falácia científica, que é comparar e equalizar sexo e gênero. Esse binarismo fez com que o próprio direito das mulheres de praticá-lo fosse retardado”

Wagner Xavier

“A Tiffany aparece na mídia nacional lá pelos anos de 2017, mais ou menos, ou seja, a gente já está quase com 10 anos. E mesmo assim é um caso que perdura. E mesmo ela tendo já completado a sua transição de gênero, estar totalmente de acordo com os índices todos de de de de controle hormonal…por que a perseguição a esse corpo?”, indaga o pesquisador, que na sequência coloca duas possíveis respostas.

A senso comum diz: “Ah, porque esse corpo de uma mulher trans já foi de um homem e, portanto, teve toda a formação em termos de hormônio, desenvolvimento ósseo, maturação biológica, de um homem, né? E o segundo ponto é que muitos falam: ‘É injusto, ela tem uma vantagem’. Mas as pessoas falam isso sem saber, de fato, se esse corpo, se já transicionou, se ele tá em controlado ou não, etc.

Para essas pessoas que dizem que a Tiffany estar presente nas quadras é injusto, eu só tem atletas cisgênero mulheres, inclusive heterossexuais ,que tem saques e ataques com velocidade acima da Tiffany. E essas mulheres não passaram por uma ‘vivência’ de um corpo masculino. Se elas têm um níveis performáticos maiores que o da Tiffany, então, a gente já começa a questionar se uma mulher trans tem vantagem na questão de força.

“‘Ah, porque a Tiffany tem uma uma uma ossatura desenvolvida de homem, né?’. A área de maturação, quando estudamos em educação física, vemos que o osso do ser humano cresce sim em dado período, principalmente na puberdade de homens e de mulheres. Só que ao longo da vida, a gente tem o que é chamado de modulação óssea. Os nossos ossos continuam se desenvolvendo”, completou o pesquisador.

“Não importa falar que a Tifanny tem níveis de testosterona menores do que uma mulher cisgênero. Deveria importar, mas não importa porque mesmo assim ela trans. Por ser trans, há uma punição. ‘Ela vai sim passar pelo teste porque queremos averiguar o nível dela está de testosterona’. Há uma perseguição declarada e discriminatória em relação à presença de pessoas trans no esporte. Isso é algo inquestionável. Essa perseguição está instaurada. Não adianta agora, agora não adianta mais o COI virar, porque sempre vão ter desconfianças com relação a um corpo trans, principalmente de mulheres trans.”

Wagner Xavier

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