
Quanto Tifanny entra em quadra, não é representando só si mesma, e sim toda uma comunidade. E, a partir dessa quarta-feira (1º/5), a oposta pode cravar: é, enfim, campeã da Superliga Feminina de Vôlei. Emocionada após o título do Osasco sobre o Bauru no Ginásio do Ibirapuera, em São Paulo, ela deu depoimento tocante sobre seu posto de exemplo de representatividade na luta LGBTQIAP+ e sobre o preconceito que sofreu no esporte.
“Estou muito feliz de poder ter essa representatividade dentro de quadra, ser a primeira mulher trans campeã da Superliga. Depois de oito anos de muita luta, de muita transfobia, de, às vezes, tentar parar por medo. Mas eu tenho um Deus maior que falou, ‘filha, não, você tem que continuar’. Eu vou continuar porque eu sei que eu não estou fazendo nada de errado. Eu sei que eu não estou tomando lugar de ninguém. Eu sei que pessoas trans precisam de representatividade. E eu vou ser essa representatividade dentro do esporte. Porque nós merecemos.”
Tifanny, oposta do Osasco
De acordo com a Associação Nacional de Travestir e Transexuais (Antra), o Brasil foi, em 2024, pelo 16º ano seguido, o país que mais mata pessoas trans no mundo. Tifanny sabe que é uma sobrevivente, já que, segundo a mesma instituição, a expectativa de vida de um apessoa trans no Brasil é de cerca de 35 anos – e a oposta do Osasco tem 40.
“Nós, às vezes, somos colocadas para fora de casa. Quando uma criança negra nasce, os pais amam essa criança. E muitas das vezes, quando é LGBTQIA+ e os pais descobrem, que é pessoa trans, eles mesmos expulsam de casa. Então, às vezes, até na própria família, a gente não tem amor.”, disse a jogadora que, na sequência, mandou recado.
“Por isso, eu digo, pais, amem os seus filhos como eles são. Não tenha vergonha deles. E eu não tenho vergonha de ser quem eu sou. Eu vou, sim, abrir portas para muitas crianças e adolescentes que um dia sonham em ser atletas profissionais. Seja pessoas trans ou não. O sonho pode ser realizado se você tiver fé e se você for bem resiliente”, finalizou
A história de Tifanny
Tifanny iniciou sua carreira no vôlei masculino, em que chegou a defender o Juiz de Fora e iniciou oficialmente o processo de transição de gênero no final de 2012, fora do Brasil. Ela se submeteu a dois procedimentos cirúrgicos e a tratamento hormonal para diminuição dos seus níveis de testosterona, o principal hormônio sexual masculino.
Em 2017, a Federação Internacional de Vôlei (FIVB) autorizou formalmente a oposta a jogar em campeonatos femininos regularizados pela entidade e, ainda naquele ano, tornou-se a primeira mulher trans a jogar a Superliga Feminina, á época pelo Bauru. Quatro anos depois, ela se transferiu para o Osasco, onde fez história em 2024/2025 com a conquist da Tríplice Coroa: Campeonato Paulista, Copa Brasil e Superliga.
Mesmo seguindo a regulamentação do Comitê Olímpico Internacional e fazendo exames regulares, que atestam que ela está bem abaixo do nível máximo permitido de testosterona por litro de sangue, Tifanny foi alvo de muito preconceito até no meio do vôlei, entre jogadoras e ex-jogadoras e até o técnico Bernardinho.
O treinador da Seleção Brasileira Masculina de Vôlei disse, em 2019, após ponto da oposta contra seu time, o Rio de Janeiro (atual Flamengo), a seguinte frase: “Um homem, é f***”. Depois da repercussão negativa após ser flagrado em câmera, ele se desculpou com a atacante. Em 2018, a oposta Tandara, que à época jogava no Osasco e na Seleção Brasileira, também se declarou contra a presença dela na Superliga, sob a justificativa vaga de que “a puberdade dela se desenvolveu no sexo masculino”.
Com o passar dos anos, embora tenha seguido sofrendo com preconceito, a jogadora passou a ser mais aceita na Superliga e chegou a ser cotada na Seleção Brasileira devido ao bom desempenho na Superliga. A convocação nunca aconteceu, mas ela atingiu feito mais importante: abriu portas para as mulheres trans no vôlei – e no esporte em geral – brasileiro.
O que mais ela disse
“Eu estou aqui representando toda a classe LGBTQIA+, pessoas trans, pessoas que acreditam, jovens e adolescentes que estão acreditando no esporte. Eu saí de uma cidade pequena no interior do Pará, onde o esporte é de rua. Mas eu sonhei em ser uma atleta profissional. E foi vendo essas jogadoras aqui, ó, aquela ali, que me inspiraram. E hoje eu estou inspirando muitas outras. Obrigada, Sheilla, obrigada Virna. Obrigada por existir, porque eu vou fazer, sim, parte do sonho de muitas crianças e adolescentes”, afirmou Tifanny.
A oposta também “alfinetou” as críticas de que não seria uma jogadora decisiva. Foi dela o ponto final que deu ao Osasco o título sobre o Bauru, bem como o ponto que garantiu a classificação sobre o Minas na semifinal e sobre o Flamengo nas quartas de final.
“Eu já recebi chacotas de ser a atleta que não fecha o jogo, que amarela, afina, que não pode ter a última bola porque não fazia ponto. E hoje eu tenho muito orgulho. Orgulho de saber que meu Deus, que a fé que eu tive nele, ele depositou em mim. E sim, eu fechei quartas de final, fechei semifinal, fechei a Superliga”, disse.
O título do Osasco
O Osasco bateu o Bauru por 3 sets a 1 nesta quinta (parciais de 26/24, 19/25, 28/26 e 25/20), em um Ginásio do Ibirapuera lotado, para sagrar-se campeão da Superliga Feminina de Vôlei.
Tifanny foi uma das destaques da partida e terminou como a segunda maior pontuadora (24). A líder no quesito foi a ponteira Natália (25). Foi da oposta o ponto decisivo no quarto set para dar o título ao time paulista após longos 13 anos de espera. Ela terminou como a maior pontuadora da equipe na competição e a quarta maior geral, com 442 bolas no chão.