A personalidade confiante e “afrontosa” de Nyeme dentro e fora de quadra nasceu como uma espécia de “escudo” contra a xenofobia sofrida no início da carreira no vôlei. Em entrevista exclusiva ao No Ataque, a líbero do Minas nascida em Barra do Corda, no interior do Maranhão, relembrou caso marcante de preconceito sofrido nas categorias de base e explicou que sempre treinou mais por ser, muitas vezes, a única nordestina dos espaços que ocupava.
A medalhista olímpica pela Seleção Brasileira em Paris 2024′ saiu de casa ainda aos 13 anos. De uma cidade com pouco menos de 90 mil habitantes, ela se mudou para a maior metrópole da América Latina – São Paulo, que soma quase 12 milhões de residentes e está cerca de 2.500km distante do seu município natal – para tentar prosperar no vôlei.
“O meu maior sofrimento nem foi com o que o povo falava. Era mais pessoal, porque sofri muito por sair aos 13 anos de casa. Sentia muita falta do meu pai, da minha mãe, da minha irmã e da minha avó. Então eu ligava todos os dias: ‘Mãe, eu quero ir embora, eu não quero ficar aqui sozinha’, porque eu morava sozinha numa capital. Aos 13 anos eu falo hoje: ‘Como que minha mãe teve coragem, meu pai, de aceitar que eu fosse?’”, iniciou Nyeme, em entrevista exclusiva ao No Ataque.
Na sequência, a líbero – que está de volta ao Minas para a temporada 2025/26 após ter dado um ano de pausa na carreira para ser mãe – contou não se recordar de muitos casos explícitos de xenofobia sofridos por ser nordestina, mas relembrou um que foi marcante na trajetória de sua vida.
“Eu lembro de uma vez, em São Paulo, eu ia falar com a diretora do meu time, era base ainda. E aí um assistente técnico comentou assim: ‘Ah, você está acostumada a vir a andar a pé. Por que você quer ir de elevador?’ Eu fiquei assim: ‘Como é que você me falou isso?’. E ele era bem mais velho. Isso eu não não não esqueço,se teve outras coisas, não lembro. Aí falei assim: ‘Meu Deus’. E eu fiquei calada. Depois, falei: ‘Nunca mais alguém vai tentar me diminuir por por onde eu vim. Porque não é porque você é de São Paulo e eu sou do Nordeste, que você é melhor do que eu’.”
Nyeme, ao No Ataque
‘Fiquei mais bocuda’
Nyeme contou ao No Ataque que, depois do caso de xenofobia explícito sofrido, decidiu que não ficaria mais calada diante de situações inconvenientes.
“Depois disso, fiquei mais bocuda. Então, acho que as pessoas nem cogitavam falar, porque se falassem, iam ouvir também. Aprendi desde cedo a ter essa casca, de não ser humilhada pelas pessoas só porque eu sou do interior. Já é difícil para mim, eu sempre fui a única nordestina de onde eu estava, sempre fui a única maranhense a sair do do Maranhão e ir para outro estado para conquistar, para viver o seu sonho no vôlei. No vôlei, acho que não tem outra do Maranhão, sou a única. É um feito muito grande. Fico muito orgulhosa porque não desisti”
Nyeme, ao No Ataque
“Sempre tentei treinar mais que todo mundo para ninguém ter nada para falar: ‘Ah, ela do Nordeste, ela não é boa, não sabe jogar’. Sempre cheguei nos lugares, eu falava: ‘Eu nunca fiz base’”. E as meninas sempre passaram por infantil, infanto… eu já cheguei no infanto. Então eu sempre demonstrei na quadra o meu valor, tanto fora quanto dentro, então todo mundo sempre me respeitou muito. Por isso que eu não lembro (de muitos outros casos de preconceito), ainda bem”
‘Sempre fui ‘a’ nordestina’
Além de ter treinado “a mais” para tentar evitar comentários xenofóbicos, Nyeme assumiu personalidade confiante e, muitas vezes, “afrontosa” dentro de quadra. Não é incomum a ver defendendo bolas e “desfilando” na sequência, “encarando” atacantes ou, depois de seu time tomar um ponto de saque, pedir à sacadora para “sacar de novo” para testá-la.
“É que eu sou muito confiante. Às vezes as pessoas falam e eu quero responder, aí o Micael fala: ‘Calma que tu não tá dentro de quadra, respira, respira’ (risos). Porque eu acho que eu já aprendi a ser assim, porque eu preciso, como eu sempre fui a diferente, a nordestina, aquela do Nordeste, a única. Então eu tinha que ser confiante naquilo que eu fazia. E isso pode parecer afrontosa para o povo. Às vezes eu sou, eu falo a verdade mesmo que às vezes eu sou, porque tem hora que atacante faz ponto e fica encarando. Eu já não posso fazer ponto nela, então eu tenho que fazer o quê? Afrontar (risos).”
Nyeme, em entrevista exclusiva ao No Ataque
“E isso é bom porque às vezes quando eu saio do jogo, minhas amigas falam: ‘Nossa, a gente joga contra você só nesse time’, porque ficamos com ódio de tu, que tu defende em pé, pega uma largada, não conseguimos fazer ponto, então o nosso time joga contra você. Eu falo: ‘Ah é? Que bom, então, que consigo desestabilizar elas pela minha confiança’”, prosseguiu.
“Se tomo um ace, às vezes levanto a mão, tipo, ‘Saca de novo!’, porque quero saber se a pessoa é tão boa assim para fazer de novo. E normalmente eu acerto essa segunda chance que tenho. Então, isso demonstra ‘afronte’, mas para mim é mais a confiança”, finalizou Nyeme.
Saída de casa aos 13 anos
Nyeme revelou ao No Ataque que a ideia de ir para São Paulo para jogar as categorias de base em clubes mais estruturados inicialmente foi rechaçada pelos pais, que só deixaram depois de muita insistência dela.
“Eu lembro que falei para o meu pai e para minha mãe: ‘Quero muito ir para São Paulo’, porque no Maranhão, jogava mais campeonato escolar. Criaram um time para a Superliga A adulta, só que eu era mais nova, tinha 13 anos, então eu não jogava, só treinava. Meus técnicos do Maranhão Vôlei na época falaram: ‘Vai para São Paulo, porque lá tem a base’. Eu ia ser infanto, então ia jogar infanto, juvenil, aí que ia chegar no adulto, então tinha muito tempo ainda”, iniciou.
Falei para meus pais: ‘Pai, mãe, eu quero ir’. Aí minha mãe: ‘Deus me livre, não vou deixar você ir tão nova’. E eu chorava, lembro que eu chorava. Eu falei: ‘Pai, mas é o meu sonho”’ E ele falava: “Não, não tem como”. E eu berrava: ‘É o meu sonho, por favor, deixa eu ir”. Aí, ele falou: ‘Eu acho que se eu não deixasse tu ia fugir do tanto que tu tava certa que do que tu queria’. Como os técnicos também me apoiaram muito, falaram: ‘Não, vai lá, a gente ajuda você lá’.
Nyeme, ao No Ataque
A líbero disse ter visto muitos casos de pessoas que “tentaram a sorte” no vôlei do Sudeste como ela, mas sofreram com a falta de compromisso financeiro de clubes:”Graças a Deus, nunca me faltou nada, nem carinho das pessoas, nada, nunca passei nenhuma dificuldade, nem financeira, nem de nenhuma forma . Porque é difícil esse início, eu já vi várias atletas a ir pro Sul para tentar jogar, e os times não cumprirem o combinado, aí lá não tem ninguém, fica sem dinheiro e tem que voltar para casa”.
“E eu nunca tive esse problema, porque joguei no Barueri e no ADC Bradesco, instituições bem sérias. Infelizmente o ADC Bradesco acabou, mas um dos melhores lugares da base era lá, eles ensinavam, abraçavam e o principal, não queriam que a gente só se dedicasse ao vôlei, investiam muito na nossa educação. Se a gente não fosse para a escola, não treinava. Era a educação em primeiro lugar e depois o vôlei”, disse a líbero.
“Aprendi muito com eles e sou muito grata por ter passado por esses lugares tão importantes que foi o que me fez permanecer e chegar até onde estou hoje”, finalizou.
Representatividade no Maranhão
Nyeme carrega consigo o fardo de ser apenas a quarta medalhista olímpica nascida no Maranhão. Além dela, que conquistou o bronze em Paris 2024, apenas a skatista Rayssa Leal (prata em Tóquio 2020/2021 e bronze em Paris 2024), a ex-jogadora de futebol Tânia Maranhão (prata em Atenas 2004) e o corredor Codó (bronze no revezamento 4x100m de Pequim 2008) alcançaram o feito.
Ao No Ataque, a líbero do Minas contou como é ser “venerada” na sua cidade natal e criticou a desigualdade do esporte brasileiro.
Eu fico muito feliz. Eu chego na rua na minha cidade, o povo já fala: ‘Nyeme, tu chegou, eu tô jogando vôlei por causa de você’, as criancinhas pequenininha, aí começam a chorar. É tão lindo, tão puro, porque elas não me conheciam pessoalmente e os pais já falavam: ‘Ela te ama, não para de falar em você, tem várias cartinhas que ela escreveu com o sonho de te conhecer para te entregar’.
E eu falo: ‘Gente, eu só estou jogando vôlei, nem mereço tanto amor, tanto carinho assim de criancinhas, de pessoas que, não é por maldade, é realmente por ver em mim algo que elas podem se tornar também, porque ser do Nordeste já é muito difícil. Sou a quarta medalhista olímpica do do Maranhão. É muito pouco comparado a São Paulo. Vai ver quantos têm de São Paulo, de Minas, são muitos.
Nyeme, em entrevista exclusiva ao No Ataque
“Me sinto muito orgulhosa de mim por poder estar gerando sonhos em outras pessoas. Eu sempre falo para elas: ‘Gente, se eu consegui, vocês também conseguem. Eu sou da mesma cidade que vocês. É só não desistir e sonhar. Eu sempre sonhei muito alto, é isso que eu sempre deixo para elas: ‘Sonhem alto, porque a gente consegue, se a gente batalhar, não é fácil, mas a gente consegue’”, finalizou.
A carreira de Nyeme
Nyeme deu seus primeiros passos no esporte no Maranhão Vôlei mas, ainda na adolescência, mudou-se para São Paulo para jogar nas categorias de base do extinto ADC Bradesco.
Após três meses por lá, migrou para o Barueri, onde começou a chamar atenção do cenário nacional e conquistou seu primeiro título como profissional: o Campeonato Paulista de 2019. Foram duas temporadas no clube fundado por Zé Roberto Guimarães antes de, em 2021/22, migrar para o Bauru.
Nyeme brilhou na primeira e única temporada no time do interior de São Paulo – foi campeã da Copa Brasil e uma das melhores líberos da Superliga de Vôlei. O bom desempenho motivou o Minas, atual campeão da competição, contratá-la para substituir Léia, ícone do clube, que fez o caminho inverso aos 37 anos – para ficar mais próxima da família, a paulista saiu de Belo Horizonte e fechou com o Bauru.
Duas temporadas na Rua da Bahia foram o bastante para que a maranhense caísse nas graças da torcida, se transformasse em ícone do clube e passasse a figurar na lista de maiores líberos da história da equipe. entre 2022/23 e 2023/24, Nyeme conquistou cinco títulos pelo Minas: um Campeonato Mineiro (2022/23), uma Supercopa (2023/24), uma Copa Brasil (2022/23), uma Superliga (2023/24) e um Sul-Americano (2023/24).
Na Seleção Brasileira, a jogadora recebeu sua primeira convocação em 2021, quando conquistou a prata da Liga das Nações (VNL). No ano seguinte, foi vice-campeã novamente do torneio e também foi prata no Mundial. Em 2024, Nyeme brilhou na VNL e conquistou de vez o posto de líbero titular do time verde-amarelo para os Jogos Olímpicos de Paris 2024′. Na França, a maranhense foi uma das grandes destaques do Brasil e foi crucial para a conquista da medalha de bronze.