Toda relação, seja ela profissional ou pessoal, passa por fases. Começa pelo encantamento, a aprovação incondicional, até que a rotina bate à porta, e as partes começam a lidar com a vida real – e todos os tons que ela traz. A partir daí, entram duas possibilidades: a certeza de que, mesmo com defeitos e virtudes, é a escolha certa, ou os crescentes questionamentos, que colocam em dúvida o caminho tomado. É a encruzilhada com que todos se deparam. Inclusive as SAFs de clubes de futebol.
É possível observar, no Brasil, vários clubes passando por alguma dessas fases. O Bahia, por exemplo, é um dos que parecem ter alcançado o status de relação estável. Em maio de 2023, teve 90% das ações de sua Sociedade Anônima do futebol adquiridas pelo Grupo City. Pouco mais de um ano depois, aquela paixão avassaladora deu lugar a uma parceria harmônica e, ao que tudo indica, segura.
Matéria publicada pelo site Ge há dois meses mostrou que, hoje, o clube está com dívida quase zerada e um novo patamar de reforços estabelecido – Everton Ribeiro foi exemplo disso –, após investimento de mais de R$ 170 milhões. Dentro de campo, uma campanha bem digna na Série A do Campeonato Brasileiro, com o quarto lugar atual, fruto de oito vitórias, três empates e três derrotas.
No extremo oposto está o Vasco. Em fevereiro de 2022, anunciou, com toda pompa e circunstância, que estava assinando, com a 777 Partners, o “maior acordo da história dos clubes brasileiros”. Era o auge da paixão. Pouco mais de dois anos depois, divórcio litigioso: o clube conseguiu uma liminar para suspender os efeitos do contrato de venda da SAF à empresa norte-americana e devolver a gestão para os dirigentes da associação, comandada pelo atual presidente, o ex-jogador Pedrinho.
Entre um e outro está o Atlético. Em julho de 2023, o Conselho Deliberativo alvinegro aprovou o modelo e a venda de 75% da SAF à Galo Holding, grupo liberado por Rubens e Rafael Menin, Ricardo Guimarães e Renato Salvador – os 4 Rs.
Àquela altura, entre os torcedores atleticanos prevalecia um entusiasmado discurso de que, comandado por empresários bem-sucedidos e, acima de tudo, torcedores, o clube teria a cara de sua torcida: apaixonada, mas com uma roupagem milionária. Reforços de peso, salários em dia, títulos em série… Todos os planos pareciam perfeitos.
Eis que, quase às vésperas de completar um ano, o cenário não é aquele do imaginário da Massa. Muitos caíram na real de que gestão de clube não significa colocar o torcedor em primeiro plano. Por mais que, segurando a caneta, esteja um torcedor.
Muitos já enxergaram que não passa de ilusão a tese de que quem administra o clube o faz por paixão. Isso veio com algum sofrimento e derrotas que expuseram problemas – embora ainda há quem credite os últimos resultados tão somente ao azar. Ainda assim, é possível ver que a passionalidade já não é suficiente para sustentar uma cegueira coletiva.
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SAF do Cruzeiro
Esse, inclusive, foi o mal que levou a outra separação badalada em terras de SAFs, contrariando juras de amor eterno: o fim conturbado do relacionamento entre Ronaldo, Cruzeiro e torcedores.
De dezembro de 2021, quando o ex-atacante celeste se tornou sócio majoritário do clube, até 29 de abril deste ano, data da venda, houve uma montanha-russa de emoção, como convém a relacionamentos instáveis: momentos de euforia, apreensão, tristeza, mais euforia, mais apreensão, mais tristeza, até chegar a revolta e, dela, o rompimento.
O torcedor do Cruzeiro voltou, então, ao marco zero, com a entrada de Pedro Lourenço. Está naquela fase da lua de mel, acreditando (novamente) em uma gestão baseada no “amor” pelo clube. Foi assim lá atrás, quando Ronaldo chegou.
Como em todo início de relação, por enquanto, tudo são flores. Até os defeitos são bonitinhos. O que é uma derrota para o Criciúma quando o futuro se projeta tão fabuloso?
Ainda não dá para saber se o roteiro celeste passará da paixão para o amor. Como em qualquer relação, é preciso esperar a rotina e seus desafios entrarem em campo.
É possível aprender com o que passou. Mas um pouco de cautela, para quem já teve o coração partido, nunca é demais. Não custa avisar.