Mudanças de domicílio, pressão, viagens, treinos, distância familiar, atrasos salariais, privações, lesões. São diversos os desafios enfrentados por atletas profissionais ao longo da construção de carreiras no mundo da bola, que por vezes são minimizados e subestimados por torcedores, imprensa e demais amantes do esporte em razão do glamour vivido por pequena parte dos jogadores que atingem o ápice.
Os percalços vivenciados pelos profissionais do esporte, muitas vezes de forma silenciosa e solitária, impactam não só a saúde física deles, como também a saúde mental, tema que por muitos anos foi um tabu no âmbito do futebol de alto nível.
O agora ex-jogador Norberto, com passagens por América, Cruzeiro e outros clubes brasileiros, detalhou em entrevista ao No Ataque dificuldades emocionais vividas ao longo da trajetória como atleta profissional. No caso dele, os problemas tinham a ver com as graves lesões sofridas e também por adaptações culturais e outras razões.
Contato com diferentes culturas exige adaptações
Norberto construiu uma carreira de sucesso por clubes brasileiros. Foi campeão estadual em quatro estados (Alagoas, Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Norte) por CSA, Vitória, Sport e América-RN. Além disso, conquistou a Série B do Campeonato Brasileiro pelo América e teve passagens por Cruzeiro, Coritiba, Ponte Preta e Villa Nova.
Os caminhos do futebol fizeram com que o jogador atuasse por times de quatro estados do Nordeste, dois do Sudeste e tivesse uma passagem pelo Sul.
Naturalmente, as culturas dos respectivos locais, bem como público, imprensa e ambiente, alteram-se substancialmente a cada transferência. Logo, a adaptação aos contextos passa a ser um desafio para os atletas.
Sobre isso, Norberto revelou que as torcidas nordestinas costumam ser mais “calorosas”, tanto positiva quanto negativamente, enquanto a experiência sulista tendeu a ser mais fria. O ex-atleta também apontou diferenças no tratamento dispensado pela imprensa à cobertura dos clubes.
“Consegui os títulos no Nordeste, Pernambucano, Potiguar, Baiano e Alagoano, também joguei no Coritiba e há muitas diferenças do Sul para o Sudeste, para o Nordeste, há uma diferença cultural, de imprensa e de torcida. No Nordeste a torcida é mais calorosa, lota o estádio, se estiver bem idolatra, se estiver mal massacra. No Sudeste é um pouco parecido, mas a imprensa é mais “viva”, mais presente que no Nordeste. O Sul tem uma imprensa muito forte também, mas a torcida dá um pouco mais de espaço para a vida pessoal do jogador. No Nordeste, a vida pessoal é muito ligada à vida profissional. Se estiver mal, não se pode sair de casa. Não dá para sair, todo mundo te conhece, todo mundo fala, tem essa diferença”
Norberto, ex-jogador
Lesões em profusão sobrecarregaram a saúde mental
Norberto foi um jogador que passou incólume por problemas físicos até o ano de 2015, quando, aos 25 anos, sofreu a primeira grave lesão da carreira: ruptura nos ligamentos (cruzado anterior e colateral medial), no menisco e na cartilagem do joelho direito.
Dali em diante, iniciava-se um calvário que perseguiu o ex-lateral até o fim da carreira, em 2025. A aposentadoria foi motivada por novas lesões musculares, dores e treinos extras de musculação. Tais situações exigiram do jogador muita força mental e equilíbrio, a fim de superar as dificuldades e não sucumbir aos questionamentos e incertezas dos processos de recuperação.
“Cara, até 2015 eu não tinha tido lesões. Jogava a maioria dos jogos, estava sempre disponível, muita força física, muito vigor, velocidade e potência. Até que eu tive a primeira lesão no Vitória, rompi o ligamento cruzado anterior, o ligamento colateral medial, menisco e cartilagem. Então, pegou o joelho todo praticamente. Na minha recuperação diziam que eu voltaria bem, mais forte do que era, mas na reabilitação eu vi que tinha alguma coisa errada”, disse.
Ele relembrou as adversidades vividas na época: “Eu não conseguia fazer a máquina extensora, não levantava meu joelho. Depois disso comecei a ter muitas lesões musculares, pois compensava a perna fraca com a forte. Demorei quase dois anos para voltar a apresentar um bom nível de futebol, no América. Mesmo assim voltei sofrendo com lesões de panturrilha, coxa, ficava dois ou três jogos fora e sentia muita dor no joelho”.
“Ali comecei a conviver com isso e entender que eu precisava fazer muito mais do que eu fazia antes. O Enderson dizia que eu precisava trabalhar a força, eu não entendia muito na época mas precisei fazer mais trabalhos na academia que os outros, porque sentia muitas dores.”
Estigma, carreira prejudicada e perda de oportunidades no mercado
Para além da grave lesão sofrida em 2015, Norberto estirou os ligamentos do joelho em 2018 (no América), teve uma lesão na posterior da coxa em 2021 (no Cruzeiro) e voltou a romper o ligamento cruzado anterior do joelho em 2023 (no América-RN).
Ao ter convivido com lesões em demasia, o ex-jogador afirma veementemente que teve a carreira prejudicada em decorrência das dificuldades físicas e também pelo estigma que passou a carregar. A “fama” negativa teria lhe retirado diversas oportunidades de mercado, em razão da desconfiança dos clubes que potencialmente o contratariam.
“Machuquei muito e isso me prejudicou na carreira porque fiquei com esse estigma bom jogador, mas que machucava muito. Talvez eu poderia ter chegado a grandes clubes mais cedo, mas as lesões me atrapalharam. Sofri com isso e com a sobrecarga no outro joelho”, afirma.
“Meus joelhos doem muito, minha musculatura ficou sobrecarregada e depois dos 30 anos o mercado foi sumindo, os clubes ficavam receosos com as minhas lesões. Também comecei a perder potência, e o futebol está muito físico, sobretudo na posição de lateral, quando se joga contra meninos rápidos, você deixa de render aquilo que pensa que poderia.”
Crise de ansiedade durante jogo, diagnóstico de Burnout e decisão pela aposentadoria
A rotina exaustiva de lesões, processos de recuperação, perda de oportunidades de mercado, perseverança e obstinação foi minando gradativamente a saúde mental do ex-atleta.
Norberto comentou que as dores, limitações e o fim da carreira geravam uma estafa muito grande. Ele se sentia incomodado tanto profissionalmente quanto pessoalmente.
A junção de todos os fatores supracitados culminou em dois consideráveis e preocupantes sinais de esgotamento, que fizeram o ex-jogador repensar a carreira e tomar a decisão de parar de jogar: uma forte crise de ansiedade, ocorrida durante uma partida do Campeonato Paulista de 2022, quando jogava pela Ponte Preta; e o diagnóstico de Burnout (ou síndrome do esgotamento profissional, distúrbio emocional causado por estresse crônico no trabalho, resultando em exaustão física e mental), incomum entre atletas profissionais.
“Isso é sua carreira, é sua vida, é seu ganha-pão, você começa a pensar no fim da carreira e isso gera um estresse muito grande na vida. Com isso, eu acabei tendo burnout, na época eu pensei em parar de jogar, na Ponte Preta em 2022, estava com a cabeça muito cansada, realmente exausto. Em um jogo do Campeonato Paulista eu tive um ataque de ansiedade, o meu coração acelerou demais, eu não conseguia respirar direito, na época eu não entendi, acabei saindo do jogo. No banco, eu fiquei com o coração acelerado, fiz exames e tudo normal, não deu nada. Era uma crise de ansiedade. Entendi que tinha algo errado, decidi jogar mais um ano e parar. São problemas físicos, mentais, que suportamos com a força de Deus e da família, que no momento de fragilidade suportaram tudo para que déssemos a volta por cima.”
Norberto, ex-jogador
Preconceito relacionado aos cuidados com saúde mental no futebol
Ao No Ataque, Norberto fez uma importante e corajosa reflexão acerca da maneira como os cuidados com a saúde mental são tratados no meio do futebol.
Para o ex-jogador, muitos atletas ramo têm preconceito com tratamentos psicológicos e lidam pejorativamente com aqueles que decidem buscar ajuda profissional para lidar com questões mentais.
“Tem muito preconceito no meio ainda, dentre os jogadores, em relação à psicologia. Isso tem mudado, mas até pouco tempo atrás, tinha muito preconceito.”
Ainda segundo o ex-lateral, o desdém sofrido por aqueles que frequentam sessões com psicólogos desencoraja jogadores que potencialmente desejam buscar suporte e apoio emocional.
“O jogador que ia ao psicólogo, que declarava abertamente isso, era visto como fraco, ninguém queria ser taxado disso, de que está com a mente fraca, mas não tem nada a ver com isso.”
Todavia, Norberto acredita que cada vez mais atletas superarão esta barreira e buscarão melhor preparação mental para lidar com pressões e adversidades, tendo em vista a possível melhora de performance.
“Quanto mais suporte, quanto mais ajuda, melhor a performance. Eu acredito que os atletas daqui para frente se prepararão melhor para enfrentar pressões e adversidades.”
Dados relacionados à saúde mental no futebol
Tema cada vez mais debatido no esporte de alta performance, a saúde mental no futebol vem ganhando espaço entre clubes e atletas.
Segundo estudo realizado pela Federação Internacional dos Jogadores Profissionais de Futebol (FIFPro), 38% dos jogadores de alto nível sofriam com depressão ou ansiedade em 2020.
Na mesma toada, pesquisas publicadas pela Organização das Nações Unidas (ONU) indicaram que 9% dos atletas profissionais têm depressão, 23% deles sofrem de insônia e 7% são acometidos pela ansiedade.
Atletas consagrados como Nilmar, ex-Internacional, Santos e Seleção Brasileira; e Thiago Ribeiro, ex-Atlético, Cruzeiro e São Paulo, revelaram que tiveram depressão ao longo de suas carreiras.
Aposentadoria e futuro
Após tantas provações, desgastes e esforço necessários para a construção de uma carreira sólida, Norberto deseja descansar.
O ex-lateral decidiu que até o fim de 2025 passará os dias com a família, em Brumado, na Bahia, cidade onde nasceu. Os dias vividos próximos aos parentes, raros nos tempos de jogador, são de grande valia para o ex-atleta.
Norberto, que já fez o curso de treinadores da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), tem planos voltados para o extracampo: deseja atuar no futebol, porém na área de gestão.
“Depois de encerrar a carreira, decidi que neste ano irei descansar, estou desde fevereiro em Brumado, na Bahia. Irei descansar, curtir meus filhos, aproveitar com a minha esposa, meu pai, meus sogros, minha mãe, meus irmãos que moram perto aqui também. Vou colocar a mente no lugar e me preparar para alguns projetos”, comenta.
“Estou estudando e me profissionalizando para exercer alguma função fora de campo no a partir de janeiro, seja no futebol profissional ou com algum projeto que eu que eu tenho. O futebol ia acabar de qualquer forma, mas a vida segue. Eu quero ter uma velhice tranquila, quanto mais eu estrago o meu corpo agora, mais eu vou sofrer na velhice, então eu pensei muito nisso, em ter a velhice mais saudável possível. A vida está começando agora, não cheguei nem na metade dela ainda, eu acredito. Há grandes coisas para se viver.”