ATLETISMO

Garantida em Paris 2024, Viviane Lyra vendeu pastel para bancar carreira

Na última Olimpíada, Viviane Lyra trabalhava em barraca de pastel na periferia do RJ, cinco anos depois, tem carreira consolidada na marcha atlética e vai a Paris 2024
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Demétrio Vecchioli – Metade da Seleção Brasileira de Atletismo que foi aos Jogos Olímpicos de Tóquio tinha 26 anos ou menos. Com essa idade, Viviane Lyra ainda tirava a maior parte do seu sustento de uma barraca de pastel e caldo de cana que rodava por bairros da periferia do Rio de Janeiro.

Aos 31, só cinco anos depois, Viviane celebra uma carreira consolidada como nutricionista e, não só a classificação para as Olimpíadas de Paris, como uma expectativa real de chegar entre as dez primeiras colocadas na marcha atlética e, quem sabe, brigar por uma medalha inédita para o Brasil na disciplina.

“Só em 2022 que a situação melhorou. Acredito muito que foi de acordo com os resultados que fui obtendo. Conforme fui melhorando, fui conseguindo me alimentar melhor, suplementando, investindo em material, tênis, camping de treinamento na altitude, e os resultados foram vindo, fomos subindo degrau por degrau”, contou em entrevista à reportagem.

Começo tardio?

Viviane surgiu tarde no cenário da marcha atlética, aos 22 anos, mas é atleta desde cedo. Começou na escola, incentivada por uma professora de educação física, e gostou da ideia de andar rápido, sem correr. O pai, porém, achava ela ainda criança demais para treinar e vetou a ideia.

Só com a morte dele é que a professora convenceu a mãe de Viviane a autorizá-la a marchar. Logo se sagrou campeã estadual mirim e juvenil.

Só que a marcha não fazia parte dos Jogos Escolares e, para conseguir uma bolsa de estudo, Viviane migrou para a corrida. “Começaram a falar que não dava para fazer as duas coisas, que são características diferentes. Como eu sempre gostei do estudo e não me via como atleta, fui para a corrida. De 2007 a 2015, fiz até meia maratona, mas minha prova era os 3.000m com obstáculos.”

Ela até chegou a uma seleção brasileira sub23, em 2014, mas não pretendia levar aquilo para a vida. Havia concluído a faculdade de Nutrição como bolsista do Prouni e logo abandonaria o atletismo para trabalhar como nutricionista, estava só esperando uma chance. Até que…

Da barraca à marcha

Antes da Olimpíada o Rio recebeu o evento-teste da marcha atlética para os Jogos. “Treinei três dias de técnica, não tinha volume de 20 km, mas falei que era minha oportunidade de voltar a marchar. Comprei uma briga enorme com a equipe, consegui a inscrição e fiz. A marca não foi boa, mas classifiquei para o Sul-Americano”. Na primeira vez defendendo o Brasil, fez 1h55min. Quase meia hora acima do recorde brasileiro.

“No ano seguinte já estava fazendo 1h40min no Troféu Brasil. Ainda não tinha Bolsa Atleta, nenhum apoio, precisava continuar trabalhando. Mesmo já formada, continuei no pastel, que era de onde tirava meu sustento”, lembra.

Foram longos anos trabalhando na rua em Realengo, em Jardim Novo, praça do Canhão, Cidade de Deus, Gardênia. Foi ali que sofreu um acidente que, por sorte, não foi mais grave. Chovia e ventava forte, a barraca virou, e junto dela o tacho do pastel.

O óleo quente caiu sobre as pernas de Viviane. “Graças a Deus não estava muito quente. Fiquei vários dias sem poder treinar, ficou a cicatriz, mas depois foi sumindo”.

Mesmo estudando nutrição e dependendo de uma alimentação balanceada para ter bons resultados esportivos, Viviane teve o pastel como alimento.

“Eu me sentia mal porque eu entendia que não era pastel que eu tinha que comer, mas não dava tempo de fazer comida. Chegava em casa meia-noite para acordar 5h30 da manhã do dia seguinte. Batia fome e comia pastel, era meu sustento alimentício, ainda que soubesse que era muito errado em relação à nutrição.”

Novos tempos

Viviane trabalhou com pastel e caldo de cana até 2019, mesmo ano em que foi pela primeira vez ao Pan e ao Mundial de Atletismo. Voltaria à barraca em 2020, no auge da pandemia, para ter de onde tirar sustento. No fim do ano, venceria o Troféu Brasil nos 35 km, e o Sul-Americano nos 50 km.

Na época, o programa olímpico tinha uma prova de 50 km, mas só para os homens, e havia pressão para as mulheres terem a mesma oportunidade. Viviane sonhava com isso, enquanto buscava vaga nos 20 km. Tinha tudo para fazer índice na temporada europeia de 2021, mas uma nova onda da pandemia impediu a viagem. Acabou fora de Tóquio-2020 por uma posição no ranking.

Desde então, a evolução é constante. No ano passado, baixou quatro minutos seu recorde pessoal, para 1h28min36, resultado que a fez ser oitava colocada no Mundial. Fechou 2023 como líder do ranking nacional, classificada a Paris-2024, e 17ª do ranking. No Mundial, ainda foi quarta nos 35 km, prova que não faz parte do programa olímpico, e por pouco não beliscou uma medalha.

Com o foco nas Olimpíadas, Viviane, que tem pós-graduação em nutrição esportiva, agora é também bacharel em educação física e realizou o sonho de falar espanhol fluente, não deixando nunca de estudar, parou por um tempo com os atendimentos como nutricionista. Venceu a Copa Brasil de Marcha Atlética e, neste fim de semana, disputa os 35 km no Campeonato Sul-Americano, no Recife.

É atleta do Praia Clube, da Aeronáutica e do Time Rio, da prefeitura do Rio de Janeiro. Também recebe Bolsa Pódio e faz parte do programa de alto rendimento da Confederação Brasileira de Atletismo. Para quem não pretendia ter uma carreira de atleta, foi longe, mas quer ir mais.

“A gente está se preparando para chegar no auge da performance em Paris, e lá dar meu melhor. Buscar o top 10, top 8, top 5, medalha, nada é impossível. Vamos fazer uma preparação para chegar forte, esse é o objetivo principal.”

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