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‘Recusa ao esquecimento’, diz autora de livro sobre incêndio no CT do Flamengo

Tragédia no Ninho do Urubu completa cinco anos nesta quinta; No Ataque entrevistou Daniela Arbex, autora de livro sobre o incêndio
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O dia 8 de fevereiro marca o luto eterno e a saudade desesperadora das famílias dos 10 atletas das categorias de base do Flamengo que morreram no incêndio no Centro de Treinamento George Helal, o Ninho do Urubu, em 2019. Passados cinco anos, os acusados de serem responsáveis pelos antecedentes que provocaram as chamas no contêiner de aço estão impunes. Nessa segunda-feira (5/2), a jornalista Daniela Arbex lançou o livro-reportagem “Longe do Ninho”, que conta detalhes inéditos da tragédia. A obra dilacerante gera angústia, tristeza, revolta e a certeza de que as mortes poderiam ter sido evitadas.

A autora, que concedeu entrevista exclusiva ao No Ataque, recorda na obra a noite trágica que deu fim ao sonho dos adolescentes de se tornarem jogadores profissionais. Naquela madrugada, Arthur Vinicius (14), Athila Paixão (14), Bernardo Pisetta (15), Christian Esmério (15), Gedson Santos (14), Jorge Eduardo (15), Pablo Henrique (14), Rykelmo de Souza (16), Samuel Rosa (15) e Vitor Isaías (14) se viram em meio ao desespero para fugir do fogo.

Depois de cinco anos da tragédia, alguns fatos ainda eram nebulosos para a população. Uma das novidades trazidas por Daniela é que, naquela noite, oito dos 10 jogadores tentaram sair do contêiner em chamas – portanto, não morreram dormindo, como se acreditava.

Em um cenário cruel e praticamente sem saída – o alojamento tinha apenas uma porta e todas as janelas eram gradeadas -, os meninos que estavam nos quartos mais distantes perderam as forças na fuga. Gedinho morreu a menos de meio metro da saída.

Dos sobreviventes, Pablo Ruan se espremeu pelas grades da janela para sair. Na ocasião, viu os amigos Samuel Rosa e Jorge Eduardo gritarem por socorro, mas não conseguiu ajudar. Os corpos dos dois se fundiram. Na tentativa desesperadora de escapar em meio à fumaça e à temperatura elevadíssima – o interior do alojamento chegou a 600°C -, Samuel tentou carregar Jorge nas costas.

“Acho que a reconstituição do incêndio foi muito impactante. Para mim, quando descobri que os meninos não tinham morrido dormindo, como os pais imaginavam, foi muito difícil. Descobrir que um menino levou o outro nas costas, mesmo sabendo que eles estavam presos naquele quarto, porque a porta estava com problema. Isso me mostrou a grandeza desses meninos, o tamanho do afeto que eles nutriam um pelo outro. Consideravam o outro como irmão. Eles tiveram uma capacidade de cuidar do outro.”

Daniela Arbex, jornalista e escritora.

Alojamento do Ninho do Urubu - (foto: Reprodução/Livro Longe do Ninho)
Formato do alojamento em que os garotos dormiam na noite do incêndio(foto: Reprodução/Livro Longe do Ninho)

Irresponsabilidades e irregularidades

A maioria dos atletas não era nascida no Rio de Janeiro. Com exceção de Arthur Vinicius, Christian e Samuel Rosa, os outros sete se mudaram para a capital carioca para viver o sonho de jogar no Flamengo. Dedicar a vida ao futebol era visto como salvação e ascensão social para muitos deles.

Além de exterminar o sonho pessoal dos adolescentes, a tragédia condenou famílias a viverem um luto infinito. Os pais, que confiaram na estrutura e na grandiosidade do clube, não sabiam que o Ninho do Urubu funcionava sem alvará desde 2012.

A irresponsabilidade perdurou por anos. Contudo, dias antes do incêndio, um problema no ar-condicionado foi o alerta. Um especialista esteve no CT para consertar o equipamento, mas o problema vinha da fiação elétrica. O Rubro-Negro estava ciente das irregularidades e, mesmo assim, optou por não dar atenção.

O fogo começou por volta das 5h, justamente no ‘problema ignorado’: um curto-circuito no motor do ar-condicionado.

Foi uma tragédia anunciada. Houve vários alertas em relação ao próprio alojamento ser considerado inadequado para a permanência dos meninos. Houve a identificação que havia apenas uma porta, do gradeamento das janelas. Então, é uma tragédia anunciada. Eles foram avisados ao longo dos anos. O Ministério Público apontava e eles iam corrigindo, mas a gente tem que pensar na capacidade do sistema de Justiça. Porque o tempo da Justiça não é o mesmo de quem precisa dela. Então, a ação civil pública foi proposta, mas aceitou tantos recursos que a urgência por tirar os meninos do alojamento se perdeu.

Daniela Arbex

Dos apontados como culpados pelo incêndio, nenhum foi condenado. Na verdade, os únicos que ‘cumprem pena’ são os pais, que foram obrigados a seguir em frente mesmo faltando uma parte de si. Marília, mãe de Arthur Vinicius, enterrou o filho no dia em que ele completaria 15 anos.

Já Rosana, mãe de Rykelmo, não pode ver o filho usar as lentes de contato que mandou entregar no CT na manhã em que tudo acabou.

“Outro momento emocionante foi quando os corpos chegaram no Instituto Médico Legal (IML) e a legista percebeu que as placas de crescimento estavam todas abertas. Isso mostra que eles estavam em pleno desenvolvimento, tinham a vida inteira pela frente. Entender o tamanho do sonho e o tamanho do afeto e da ausência das famílias. Eles vivem uma ausência que é permanente”, disse.

Sete anos para adequação da estrutura

Em janeiro de 2013, o deputado federal Eduardo Bandeira de Mello (PSB) assumiu a presidência do Flamengo, cargo em que permaneceu até 2018. Ele foi um dos responsáveis pela reestruturação que contribuiu para que o clube seja a potência que é nos dias atuais. Entre as ações realizadas por Bandeira e seus aliados, a negligência em relação à segurança do CT foi o que custou mais caro. 

Em 2010, sob a gestão de Patrícia Amorim, o Flamengo migrou todas suas atividades para o Ninho do Urubu. Dois anos depois, o clube havia perdido o alvará de funcionamento cedido pelo Corpo de Bombeiros. De 2012 a 2019, seguiu-se assim, sem a liberação, mesmo com todas determinações feitas pelo poder público, que o clube se recusava a acatar.

“O Flamengo recebeu inúmeras oportunidades para fazer as adequações necessárias Não sei se outros clubes teriam tantas. Desde 2012, foi iniciada uma investigação num acidente com um atleta num canteiro de obras. Em 2014, foi proposto um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), que o Flamengo não quis assinar. Depois segue sendo fiscalizado. Até que chegamos em 2018, que talvez seja a que mais me chocou, porque falo que é premonitório. O fiscalizador percebeu que, no caso de uma emergência noturna, haveria dificuldade de atender os meninos em função da presença de apenas um monitor. E isso foi um pedido desde 2014, para que contratassem mais monitores. Quantos alertas foram feitos até aquela madrugada, que não precisava sequer ter acontecido? Eles tiveram muitas chances, mas os meninos não tiveram nenhuma.”

Daniela Arbex
Escombros do Ninho do Urubu - (foto: Reprodução / Twitter)
Escombros dos containers que foram destruídos após o incêndio que vitimou dez adolescentes(foto: Reprodução / Twitter)

O alvará definitivo para funcionamento do Centro de Treinamento George Helal, o Ninho de Urubu, só foi concedido ao Flamengo em 30 de maio de 2019, dois meses após a tragédia que vitimou os jogadores da base.

Investigações e julgamento

A Polícia Civil (PC) terminou as investigações oficiais sobre a causa do incêndio em abril de 2019. Em janeiro de 2021, o Ministério Público (MP) denunciou 11 pessoas por incêndio culposo seguido de morte – três a mais que o inquérito policial. Entre os indiciados, estava o ex-presidente Bandeira de Mello. Agentes públicos, responsáveis pela fiscalização do CT, não foram denunciados.

Em março de 2021, o processo chegou às mãos do juiz Marcos Augusto Ramos Peixoto, da 37ª Vara Criminal da Comarca da Capital, que, em maio, após análise das denúncias e argumentos da defesa, acatou a acusação contra oito pessoas:

  • Eduardo Bandeira de Mello – presidente do Flamengo de janeiro de 2013 a dezembro de 2018
  • Márcio Garotti – Diretor financeiro do Flamengo na gestão Bandeira
  • Marcelo Maia de Sá – diretor adjunto de patrimônio do Flamengo na gestão Bandeira
  • Danilo Duarte – engenheiro técnico da empresa Novo Horizonte Jacarepaguá, responsável pelos containers do Ninho do Urubu
  • Fabio Hilário da Silva – engenheiro técnico da empresa Novo Horizonte Jacarepaguá, responsável pelos containers do Ninho do Urubu
  • Weslley Gimenes – engenheiro técnico da empresa Novo Horizonte Jacarepaguá, responsável pelos containers do Ninho do Urubu
  • Claudia Pereira Rodrigues – responsável pela assinatura dos contratos da Novo Horizonte Jacarepaguá
  • Edson Colman – Sócio da Colman Refrigeração, que realizava manutenção nos aparelhos de ar condicionado no Ninho do Urubu

Na decisão, o juiz apontou que o curto no ar-condicionado do quarto seis não teria sido a única causa pelas mortes. Para Marcos Augusto, aqueles adolescentes morreram por uma série de autorias colaterais.

“O Clube de Regatas do Flamengo lamentavelmente assumiu, enquanto pessoas jurídicas e instituição de direito privado, o risco de, não dispondo de autorização do Corpo de Bombeiros, dar causa a danos de maior ou menor gravidade, revelando estes autos o mais nítido e trágico evento demonstrativo desta política arriscada e nefasta de absoluto desdém para com os jovens afinal feridos e, pior, falecidos”, destacou o juiz.

“O 8 de janeiro de 2019 não começou naquele dia, começou bem antes. É um coletivo de pessoas e ações e omissões que resultaram no 8 de fevereiro. Tem muitas autorias na tragédia do Ninho do Urubu”, concorda Daniela Arbex.

Até a publicação desta matéria, o processo se encontra em grau de recurso e nenhuma sentença foi dada aos réus.

O luto de uma mãe

Daniela trabalhava em outra obra quando recebeu a mensagem de Leda Raquel Manzke Pisetta, mãe de Bernardo, uma das vítimas do incêndio. A partir desse contato, elas criam uma relação próxima, que gerou a escrita do livro.

“Durante todos esses anos, minhas coberturas foram voltadas para questões de violação dos direitos de populações vulneráveis. Nunca tinha feito uma cobertura no esporte, embora admire, não tinha tido essa experiência. O livro nasce para mim no momento que a Leda me manda fotos do Bernardo. É uma foto emblemática, em que ele está dormindo abraçado com a bola. Fiquei muito impactada, pelo o que simbolizava, a proximidade com a idade do meu filho. Aquilo me atravessou e foi ali que o livro nasceu pra mim.”

Daniela Arbex

A autora teve de percorrer cinco estados brasileiro para reconstituir, com essas famílias, as memórias que perpassam a tragédia. Ela também fez contato com alguns dos sobreviventes – naquela noite, havia 24 adolescentes nos containers, e 14 deles conseguiram escapar.

“Claro que o processo foi doloroso, mas acho que a compreensão da necessidade dessa história ser contada, foi maior. O fato de eu ter sido procurada por uma família facilitou o contato com as outras. Cada família tinha o seu tempo. Algumas não estavam preparadas para me deixar acessar a memória afetiva. Respeitei esse tempo até que as dez famílias permitissem que eu contasse.”

“Em relação aos sobreviventes, foi mais difícil. Metade falou comigo, os outros os empresários não deixaram. Mas a ajuda dos sobreviventes foi fundamental. Ao longo desses cinco anos, eles não tiveram o protagonismo que eles mereciam. Foram incríveis e tiveram uma afetividade incrível. Principalmente quando eles decidem que não vão jogar só para si, mas para honrar os irmãos, que eles chamam de ‘Nossos Dez’. Demonstraram uma maturidade incrível de continuar jogando, mesmo depois do trauma. O livro dá o protagonismo para essa amizade, para esse afeto, que eles formaram uma família.”

Daniela Arbex

A dor compartilhada serviu para unir essas famílias. O anseio por justiça e o desejo de honrar a memórias dos que se foram os movem diariamente. Esse sentimento foi traduzido em palavras por Daniela.

“Eles têm um grupo de pais, que se comunicam diariamente. Acho que se ajudam, um ao outro, criaram uma relação de confiança mútua. Tem pais que são referências e lideranças desse grupo. É bonito ver o quanto são unidos. Uma das mães me disse, depois de ler: ‘Foi muito difícil, mas depois de todos esses anos, foi a primeira vez que eu consegui devolver meu filho pra Deus’.”

Daniela Arbex

Das dez famílias que perderam os filhos no incêndio, nove já fecharam acordo indenizatório com o Flamengo. Até o momento, a família de Christian Esmério foi a única a não aceitar a proposta do Rubro-Negro – de acordo com o jornal O Globo, o clube carioca considera exorbitante os R$ 9,3 milhões pedidos por eles.

Propor/Reacender discussões

Formada em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Daniela Arbex é uma das mais premiadas jornalistas brasileiras. Após 23 anos trabalhando em redação, ela decidiu se dedicar à literatura.

Daniela Arbex, autora do livro
Daniela Arbex no lançamento do livro “Longe do Ninho”, na última segunda-feira (5/2)(foto: Reprodução/Instagram)

Sucessos como Todo dia a mesma noite, sobre o incêndio na Boate Kiss, que matou 242 pessoas em 2013, e Arrastados, que trata do rompimento da barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho, em 2019, que vitimou 272 pessoas, são obras responsáveis por reacender discussões na sociedade e servem, inclusive, para o melhor entendimento das respectivas tragédias.

“Eu acho que tem uma coisa que é comum nas minhas obras que é o desejo de criar uma conscientização em relação a essa cultura de impunidade, que fez com que a gente chegasse até aqui, que tivéssemos Mariana, Brumadinho, Ninho do Urubu e outras tragédias. Em cada livro a gente planta uma semente de conscientização. Esse eu falo que é uma declaração de amor de pais para os seus filhos. E é também uma recusa ao esquecimento.”

Daniela Arbex,

Durante o processo de escrita de Longe do Ninho, a autora descobriu um outro ponto que ela quer atingir com o novo livro: a formação de jogadores de futebol.

“Eu acredito que possa também lançar uma discussão que é tão importante quanto combater a impunidade, que é discutir a capacidade que os clubes têm de, alguma forma, garantir e zelar pela saúde mental de atletas. Os clubes estão focados na performance desses meninos, e, na verdade, o que parece é que eles não são vistos na sua integralidade. Eles são preparados para ser, se eles não forem atletas, não forem jogadores, na cabeça desses próprios meninos eles não serão nada. E aí tem toda uma questão de comprometimento da formação pedagógica, que a escola está ali para cumprir uma meta, mas não é um projeto de vida para eles.”

“Eles acabam passando anos nesse ambiente, acreditando que serão e quando eles terminam o processo e não se tornam profissionais, porque eles podem se lesionar no meio do processo, existem tantas variáveis, acabam perdidos, tendo tido a infância e adolescência confiscadas. Precisamos discutir essa questão da saúde mental dos atletas, dos cuidados efetivos que devem ser tomados junto a esses meninos, eles são sujeitos de direito. A gente não pode fazer com que eles acreditem que não têm nenhuma possibilidade além do futebol, eles podem ser outras coisas”, disse Daniela.

Papel do jornalista

“Enquanto jornalistas, temos que entender que a potência da palavra é transformadora. Temos que usar essa potência para tocar o coletivo, para construir essa memória coletiva do Brasil, que eu acho que é uma das funções mais importantes do jornalismo. Eu acho que a função do jornalismo é lançar luz sobre temas sensíveis e isso não se faz com superficialidade. O jornalismo de qualidade é capaz de mudar a realidade social”, finalizou.

Flamengo lançou nota oficial

O Flamengo, que não quis se posicionar sobre as questões trazidas por Daniela Arbex no livro, publicou, no fim da noite dessa quarta-feira (7/2), uma nota oficial sobre os cinco anos da tragédia no Ninho do Urubu. A publicação foi feita no intervalo da partida contra o Botafogo, pelo Campeonato Carioca, que terminou com vitória rubro-negra por 1 a 0.

Leia a nota

Nota de esclarecimento

Amanhã fará cinco anos da maior tragédia da história do Flamengo. Perdemos dez jovens atletas e não podemos – nem queremos – esquecer disso. Temos que rememorar nossos jovens eternamente, a cada dez minutos de cada jogo e sempre.

Será um dia muito difícil para as famílias daqueles dez jovens atletas e isso consterna a todos nós e nossa grande torcida. É dia de lamentar e de pedir a Deus por eles. Dia de nos solidarizarmos com as famílias e dar condolências. 

O clube recebeu várias consultas de muitos veículos de comunicação. Sinteticamente, o clube tem a dizer o seguinte:

Desde o trágico dia, o clube prestou toda assistência às famílias, tanto psicológica, como financeira.

Após algum tempo e independentemente de processo judicial, o clube firmou acordo com nove das dez famílias que tiveram vítimas fatais e com todos os sobreviventes. Essas famílias consideraram justos os valores da indenização e os aceitaram.

A única família que não aceitou o acordo recebe, mensalmente, uma pensão do clube, independentemente de processo judicial, e o Flamengo continua aberto para alcançar uma composição com eles, a quem muito preza.

O Flamengo tem o maior respeito e carinho pelas famílias, de modo que externamos aqui, mais uma vez, nossos mais sinceros sentimentos a todos.

SRN

Longe do Ninho, de Daniela Arbex

  • Editora: Intrínseca
  • Livro físico: R$ 69,90
  • Ebook: R$ 34,90
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